Como sabem, o gênero de escrita próprio da atividade intelectual nas áreas de Letras é o ensaio. Para falar dele, aqui, não pretendo recuar a Montaigne ou a outros autores que delimitaram o gênero ainda no primeiro período moderno. Encurto a tarefa e tomo como ponto de partida justamente um ensaio do crítico português Abel Barros Baptista no livro De espécie complicada (Coimbra, Angelus Novus, 2010). Aí, para falar do tipo de ensaio que lhe interessa, Abel examina o célebre conto A carta furtada, de Edgar Allan Poe — muito conhecido também porque citado num debate entre Lacan e Derrida. Abel o explora, entretanto, sob uma ótica original, contrapondo, a partir de seu enredo, as noções de “ensaio” e de “teoria”.
Os detalhes da história não importam muito aqui, mas se trata basicamente de um pedido de ajuda que o Inspetor-Chefe da polícia faz a Auguste Dupin — um detetive intelectual que resolve os crimes mais complicados quase sem levantar-se do sofá do seu escritório — para que tente recuperar uma carta íntima, pertencente a uma influente senhora de sociedade, que fora furtada de sua casa. Se não fosse recuperada logo, a carta tornaria não apenas essa senhora vulnerável a chantagens, mas todo o núcleo do governo onde o marido dela ocupava lugar central.
Outro aspecto importante é que a polícia sabe que o roubo fora cometido por certo ministro inescrupuloso, que não hesitaria em usá-la em proveito próprio. Ou seja, logo no início do conto, já sabemos qual era o objeto do furto e quem fora o autor dele. Apenas não se fala explicitamente sobre o conteúdo da carta, mas está claro que se trata de um caso secreto, possivelmente amoroso, o qual, revelado, poderia trazer graves consequências para a Senhora e também para o governo atual do país.
Zeloso de suas habilidades profissionais, o Inspetor-Chefe diz a Dupin que só recorre a ele por desespero, após ter usado as técnicas de rastreamento mais apuradas, revirando por três vezes a casa do ministro, do assoalho ao teto, sem encontrar nenhum rastro da carta furtada. Assim, ao longo do relato, percebe-se que a investigação policial de rotina se associa a um conjunto bem determinado de valores: as regras, o treinamento, a prática repetida, tudo o que ordena o trabalho investigativo e pode ser reaplicado a cada novo crime.
Nesses termos, o Inspetor lê para Dupin um minucioso relatório sobre a aparência do documento perdido e tudo o que a polícia fizera para recuperá-lo. Nele, percebe-se que o princípio de ordenação da perquirição policial estava fundado sobre a ideia de espaço quantificado. Segundo Abel Barros Baptista, esta é justamente a “teoria” que suporta a ação policial. Como alternativa ou contraponto a ela, o que poderia fazer Dupin? Para começar, é preciso acentuar que não despreza os relatórios, nem tampouco duvida da qualidade do treinamento policial. Ao contrário, ouve atentamente tudo o que diz o Inspetor-Chefe, e com a mesma atenção lê os relatórios produzidos por ele.
Isto feito, trata logo de negociar o quanto a Senhora estaria disposta a pagar pela recuperação da carta, pedindo em seguida para que fosse preenchido o cheque no montante combinado, pois tão logo o recebesse, já estaria em condições de restituir-lhe a carta furtada. Assim, de pronto, como num passe de mágica, ele efetivamente resolve o caso e o leitor, atônito, apenas pode-se perguntar: como logrou fazê-lo?
Ficamos sabendo da resposta a partir das explicações que o próprio Dupin dá um amigo próximo. Diz ele:
A polícia parisiense — disse ele — é excessivamente hábil no seu ofício. Seus agentes são perseverantes, engenhosos, sagazes, e inteiramente versados nos conhecimentos que sua profissão principalmente exige. (…) As medidas, pois — continuou ele —, eram boas no seu gênero, e bem executadas. Seu defeito jazia em serem inaplicáveis ao caso e ao homem. Certo grupo de recursos altamente engenhosos é, para o Chefe de Polícia, uma espécie de leito de Procusto ao qual tem de forçosamente adaptar os seus planos. Mas ele erra, sem cessar, por ser demasiado profundo ou demasiado raso no assunto em questão, e muito menino de colégio raciocina melhor do que ele.
Então se pode compreender como Abel Barros Baptista transfere o plot do conto para produzir uma ideia de ensaio, contrapondo-o às regras que organizariam a teoria policial baseada no princípio de quantificação. Em termos positivos, o aspecto mais característico do ensaio seria dado pela noção de “identificação” — Dupin imaginou como agiria aquele ministro particular e nenhum outro, em vez de simplesmente aplicar a neutralidade da regra sobre o esconderijo de objetos furtados, como fez a polícia. Se eu quisesse aplicar à questão um vocabulário retórico antigo, talvez pudesse dizer que Dupin acentuou em seu raciocínio a exigência de superar a forma genérica do discurso tratando de “aplicá-lo ao caso” e mais particularmente de ajustá-lo à “pessoa” envolvida. A polícia tinha uma boa teoria, ótimos métodos, excelentes treinamentos, mas ela estava organizada de modo a confiar na generalidade impessoal deles, não no temperamento singular do suspeito.
A resolução do caso apenas foi possível, portanto, porque Dupin, superando a perplexidade a que conduziu a teoria, ensaiou um gesto de interpretação, cuja chave residia numa personalidade peculiar. A polícia errara o alvo justamente por não considerar a possibilidade de que, com seu caráter ousado e desafiador, o ladrão escondesse a carta exatamente no lugar destinado às cartas que não estavam escondidas. Já Dupin, projetando-se na personalidade do ladrão, percebeu que este apenas teria êxito em escondê-la, disfarçando o esconderijo, ou, enfim, deixando de escondê-la. Melhor: escondia-a, de fato, dispondo-a no único lugar que não poderia servir como esconderijo, apenas modificando a sua aparência externa, com pequenas alterações no timbre e no nome do destinatário. Diante daquele lugar usualmente destinado a cartas, os policiais apenas passaram os olhos sobre elas, sem prestar-lhes a mesma atenção que a todo o resto da casa, tomado como potencial esconderijo. Assim, ao pressupor improvável esconder-se a carta onde as cartas estão usualmente expostas, a polícia perdeu o jogo.
Dupin, entretanto, não pensava em termos de teoria. Conhecia bem o ministro e até tinha sido vítima dele em outra disputa. O que estava no cerne de seu raciocínio investigativo, em face da situação que precisava ser resolvida, era a intelecção de um único antagonista. Na perspectiva de Abel Barros Baptista exatamente assim operaria a forma do ensaio: nesta, não se trata de considerar a lógica das regras que sedimentam a teoria, mas de buscar “a melhor forma de proceder com argúcia e imaginação” no caso particular. Ainda mais radicalmente, ao final de seu texto, articula fortemente a investigação ensaística à criação literária: “O ensaio não é o conhecimento disfarçado de literatura — é a literatura disfarçada de reflexão, análise, conhecimento”.
De minha parte, gostaria de aproveitar o ensaio do crítico português em duas novas direções. Mas deixo para fazê-lo na próxima coluna, na qual pretendo continuar a conversa.