A voz abafada da tradução

A voz do tradutor é naturalmente abafada pela sombra do autor
30/06/2018

A voz do autor é clara e límpida. Cristalina, estridente, chega longe. A voz do tradutor é naturalmente abafada. Abafada pela sombra do autor. Abafada pelos obstáculos que se encontram na tentativa de reproduzir a corrente fluida do texto em outra língua e em outra configuração espaço-temporal.

O esforço do tradutor para clarificar sua voz é persistente e contínuo. Como pintor, há que dar ao texto quantas demãos forem necessárias para alcançar a cor desejada. É preciso caldear bem o texto, torná-lo moldável à criatividade do tradutor, em consonância com a linha traçada pelo autor. Não é lá tarefa muito simples, nem é fácil avaliá-la posteriormente.

Nessa empresa, o tradutor se vê obrigado a abandonar dogmatismos para seguir com desprendimento as sugestões do texto e do autor. Tem que se despir de velhas concepções e velhos cacoetes para delimitar mentalmente, não sem certa audácia, os alcances dos significados. E depois fixá-los e burilá-los pacientemente no texto traduzido.

Ainda assim, o risco do abafamento da voz do tradutor continua pairando sobre o novo texto. A tensão que anima a palavra no original nem sempre é transportada com a mesma energia para a língua-alvo. O arranjo das palavras no original, tão carregado de sentidos, dificilmente tem seu efeito reproduzido em outro idioma. As palavras que ali são apertadas, espremidas, e que assim exsudam significados; aqui vivenciam configuração distinta, que provoca extravasamento similar de sentidos, mas de espírito não necessariamente igual. As associações afetivas que as palavras despertam vão muito além de meros significados frios e estáticos. Essa é a essência do processo de significação. É essa configuração, são essas associações, que o tradutor tem de levar em conta na construção de seu texto final.

Na distância, no espaço entre original e tradução, os significados esmaecem e se condensam. Nesse espaço amplo, na mente do tradutor, é longo o desfile de sentidos possíveis. São muitos os fantasmas que se despregam do original para assombrar o tradutor. São muitas e várias as vibrações que emanam da aparente dureza da palavra no papel.

O que resta ao tradutor? Aferrar-se a improváveis arrebatamentos de inspiração que lhe permitam emular com competência o original? Confiar na supervenção de um estro tão desejado quanto esquivo? Apostar na sublimação dos significados originais e, como num passe de mágica, sua posterior cristalização na reescritura? Empenhar-se, simplesmente, em aperfeiçoar uma suposta percuciência aplicada à linguagem?

O texto demanda recriação sob pena de perdas irreparáveis. E, no entanto, as perdas são inevitáveis, sob qualquer perspectiva. Sob qualquer perspectiva, a voz é abafada na tradução.

Pode também haver ganhos notáveis. Garimpando bem o texto, o tradutor pode muito bem encontrar intenções significativas que só se realizam plenamente na reescritura em outra língua. Pode provocar o susto que não se sentia no original. Pode disparar cintilações que não se viam no original. Por que não? E ainda assim se ouve lá do fundo do texto uma voz abafada. Voz de tradutor.

A tradução é assim. Texto que se erige na fronteira entre as línguas. Texto limítrofe, que captura elementos de um lado e de outro, significados de um lado e de outro. O processo é bastante complexo e, em razão disso, sua execução plena é continuamente adiada. Ainda assim, é raro encontrar quem não o considere demasiado prosaico e escassamente literário.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho