Crianças no semáforo
Meninos dopados, meninos
limpadores de para-brisas,
cercando carros, sem saberem
o que fazer com tanta vida,
carros que rosnam nos sinais
contra os da frente, mais e mais,
contra esses bandos de garotos,
camisas enormes, nos joelhos,
como uns espantalhos sem rosto;
tudo isso diante dos sóis
e dos céus, diante de nós.
Em Meditação sob os lajedos (2002), Alberto da Cunha Melo publica um poema — Crianças no semáforo — que fala de uma modalidade de trabalho infantil cada vez mais crescente: a prestação de serviço ou a exibição de alguma atividade lúdico-artística nos sinais de trânsito. Tais “trabalhos” (que também adultos exercem) buscam alguma remuneração, e em geral recebem parcas moedas ou a simples indiferença. O poema fala em “limpadores de para-brisas”, mas hoje há a concorrência de malabaristas, palhaços, comedores de fogo e faca, vendedores de água, biscoito e utensílios os mais diversos, que se misturam a mendigos e pessoas com deficiência física (“com necessidades especiais”). Todos, ali, na árdua missão de sobreviver, afirmando, com crueza e constrangimento àqueles dentro de seus carros, que a diferença de classes existe e fica a um palmo dos volantes dos automóveis de vidros fechados.
Todos os 115 poemas do livro seguem o mesmo formato fixo que este, formato que o próprio autor batizou de “retranca”: quatro estrofes (uma quadra, um dístico, um terceto, outro dístico), com os versos invariavelmente octossilábicos e esquema rímico rigorosamente regular (ABCB / DD / EFE / GG). A arquitetura formal prévia não inibe, porém, o transbordamento de problemas que a urbanidade e a miséria produzem.
No poema, a cena banal se desenha: há um semáforo em que os carros têm de parar e em que meninos tentam ganhar seu sustento. No entanto, a tensão e o conflito se evidenciam, como se uma guerra em miniatura estivesse acontecendo: os meninos parecem “dopados” e cercam os carros, que “rosnam”, feito animais inquietos; os meninos formam um “bando”, uma multidão de ameaçadores maltrapilhos, uma massa amorfa, “sem rosto”. De um lado, temos os amedrontados e poderosos adultos, burgueses, motorizados, nervosos com a ameaça que os cerca; de outro, temos as perigosas e frágeis crianças, miseráveis, pedestres, nervosas com a ameaça que rosna contra elas.
No prefácio ao livro, o historiador Mário Hélio diz que o escritor cria “uma espécie de metafísica do cotidiano feito de agonias perpétuas”. O embate cotidiano, essa “agonia perpétua”, entre os carros inquietos e os meninos de rua tem por testemunha o sol e o céu e “nós”, ou seja, a responsabilidade de tal catastrófica situação é tanto “metafísica” (de deus ou qualquer além a que se recorra) quanto terrena, e aqui nesse nós se incluem os motoristas, o poeta, os adultos, os leitores, todos aqueles que, de algum modo, não estejam do outro lado, de fora do carro, sobrevivendo, “sem saberem/ o que fazer com tanta vida”.
Não é todo poeta (aliás, é raríssimo) que se dispõe a criar uma forma fixa original e, no mesmo livro, elaborar variações temáticas dela em mais de centena de poemas. Mais duas retrancas confirmam a habilidade versificadora do escritor: a metalírica Casa vazia fala de um mundo sem leitores: “Poema nenhum, nunca mais/ será um acontecimento:/ escrevemos cada vez mais/ para um mundo cada vez menos,/// para esse público dos ermos,/ composto apenas de nós mesmos,/// uns joões batistas a pregar/ para as dobras de suas túnicas,/ seu deserto particular,/// ou cães latindo, noite e dia,/ dentro de uma casa vazia.”; e a melancólica Terapia solar fala de uma morte anunciada: “Quando o doente terminal,/ que alguém levou à beira-mar,/ esperava a manhã, o sol/ demorou muito a despontar;/// mas, quando raiou no horizonte/ do grande mar, ali defronte,/ deslocou-se tão lentamente/ quanto o enfermo, na sua maca,/ agarrando-se à areia quente,/// porque a morte, naquele dia,/ o aguardava na enfermaria”.
Em ótimo artigo no Rascunho #151, de 2012, Cristiano Ramos escreveu sobre a obra de Alberto da Cunha Melo, dando-lhe, com sobriedade, a dimensão de seu tamanho: uma boa e instigante poesia, que deve ser estudada mais verticalmente, mas sem os arroubos exagerados de leitores como Bruno Tolentino e mesmo Alfredo Bosi e Paulo Freire. O próprio poeta tinha clareza que, fora dos grandes centros, a trajetória rumo ao reconhecimento crítico fica dificultada. Em entrevista (citada no artigo), diz: “A província continua sendo cercada pelo que chamo num poema de horizonte de guilhotinas: escrevemos aqui, distribuímos por aqui e morremos aqui, esquecidos do resto do Brasil”. Embora indicado, em 2003, na categoria Poesia do prestigioso Prêmio Telecom (hoje, Oceanos), a obra de Alberto padece do mesmo mal que atinge (quase) todos os poetas: o mal da “casa vazia”, isto é, obra com escassos leitores, fadada ao limbo de guetos, amigos e simpatizantes.
Os onze versos de Crianças no semáforo, esmiuçados, desenham um quadro cruel desse “cotidiano de agonias perpétuas”: a expressão “meninos dopados” (v. 1) já impacta, como uma indesejada, porém corriqueira, figura de antítese; a imagem de limpar para-brisas (v. 2) permite pensar na visão difusa dos burgueses motorizados; em “cercando carros” (v. 3) a ideia bélica de bloqueio e encurralamento se impõe; o desajuste da cena se amplia quando se aponta que os meninos não sabem “o que fazer com tanta vida” (v. 4), isto é, deveriam estar vivendo suas infâncias, e não levados precocemente a funcionarem como peças de um sistema capitalista que a um tempo os produz e descarta; o verbo “rosnar” (v. 5) dá a ver o caráter agressivo de um carro/animal em caça, e que cresce “mais e mais” (v. 6) em tensão prestes a explodir; o termo “bando” (v. 7) aqui indica claramente o sentido de “quadrilha”, de hipotéticos criminosos, formando um estranho grupo brancalêonico com suas “camisas enormes” (v. 8), assustadores e anônimos como “espantalhos sem rosto” (v. 9); no alto, no além transcendental, sol e céu são a testemunha de “tudo isso” (v. 10), enquanto no asfalto somos “nós” (v. 11) mesmos os responsáveis pela perpetuação desse incessante drama diário.
No fragmento 19, de Minima moralia, Não bater à porta, Adorno fala de como a “tecnificação” da vida pode tornar grosseiros os homens. O gesto, aparentemente simples, de “fechar uma porta de forma suave, cuidadosa e completa” vai sendo esquecido, em função mesmo da tecnologia que faz com que portas se fechem automaticamente ou com facilidade. Com isso, com o desaprender a fechar a porta, o sujeito desaprende também o que tem atrás da porta, no interior da porta, “as coisas do ambiente”. Somos levados a agir com as coisas, e com as pessoas, comportando-nos como coisas: “Nos movimentos que as máquinas exigem daqueles que as utilizam reside já o violento, o brutal e o constante atropelo dos maus tratos fascistas”. De forma análoga, se a tecnologia do semáforo veio para tentar ordenar certo caos urbano, dar-lhe civilidade, no entanto tornou patente essa feroz diferença entre os que têm e os que não têm (carro, capital, poder). Mas, mais ainda, no tempo curto em que motoristas e meninos se enfrentam no semáforo, se concentra boa parte da história dos conflitos sociais, e nesse tempo ínfimo vêm à tona sentimentos que “rosnam”, deixando à mostra quão brutais e violentos somos quando, em situação de semáforo, escoa a utopia de uma humanidade feliz e justa.