A morte é um mestre na Alemanha.
Paul Celan
A morte é um mestre em toda a parte?
A morte
é capaz de tantas artes,
dançando conforme a letra
de cada mote?
Tão numerosas assim
as suas manhas
aprendidas
em leste, oeste,
sul
e bandas do norte?
Com certeza: um triplo
ou quádruplo
sim…
Um mestre que atua
para a minha admiração
e a tua
de modos diversos.
Nos trópicos,
por exemplo, tem rosto sombrio,
trágico,
mas colorido também,
berrante,
até festivo, nem um pouco restrito
a um só estilo —
grosseiro
quando for preciso,
tanto quanto
galante
disparando
alguns sorrisos.
A morte é um mestre,
sem dúvida —
e entre mais coisas
um mestre
de mil disfarces
— ou disfarce algum
o grande mestre utiliza:
um ator magnífico
apto a operar
com ene nuances
a partir
de uma única face,
tipo
que se transforma em tipos,
perito
em efetuar entrelaces.
Superior ao ponto
de não recusar
o Oscar deste ano,
do próximo
ou de qualquer outro,
sob vaias
afinal não letais
de críticos severos,
hiper-adornianos.
A morte,
grande intérprete
na neve
de palcos distantes,
no chão duro
deste meu agreste
e no mais
do mais do mais que enfim
ainda nos reste(m).
A morte, em síntese: um mestre.
Lino Machado é carioca, radicado há décadas no Espírito Santo, tradutor, professor de literatura. Lançou dois livros de poemas, ambos premiados em concursos em terras capixabas: Sob uma capa (2010) e Entre dois vetores (2014). Estudioso de Sá-Carneiro, Haroldo de Campos, Carlos de Oliveira, Peirce e física quântica, tem publicado em sites, antologias, e tem um terceiro volume de versos, Canônimo, no prelo. Seu perfil de poeta se harmoniza a boa parte dos perfis de poetas na cena contemporânea, ou seja, escritores afinados — já desde o ofício de ensinar — com o instrumento que praticam. O poema em foco, com o título em alemão de imediato traduzido na epígrafe de Paul Celan, é exemplo desse momento pós-marginal, marcado na frase precisa de Ana Cristina Cesar, que distinguiu duas gerações: “agora eu sou profissional”.
O poema Der Tod ist ein Meister aus Deutschland retoma o célebre, e objeto de muitas análises, Todesfuge (Fuga da morte), de Paul Celan, publicado em 1952 (há uma versão anterior, de 1947, com o título Tangosfuge). O poema de Machado se distribui em dez estrofes (sendo a última um monóstico) e um total de 66 versos. O menor verso tem uma sílaba poética, o maior tem onze sílabas. A constante irregularidade — estrófica e frasal — salta à vista, como um dos primeiros disfarces. Essa mobilidade sintática e visual mal esconde os engenhos que dão liga ao poema em sua aparente dispersão. Aliás, a mobilidade mesma é constitutiva do poema, pois se trata de constatar o quanto a morte se adapta em qualquer canto que queira.
Morte e mestre (aparecem nove vezes no poema) são palavras que se assemelham e, em contraste, criam uma relação estreita: das seis letras de mestre, cinco estão em morte; ambas são paroxítonas e ecoam-se (MorTE / MesTrE) numa rima consonantal (à maneira de Emily Dickinson). As aproximações fonomórficas e semânticas se espraiam ao longo do poema, absorvendo outras: os versos iniciais já coreografam essa dança: “A morTE é um mesTRE em Toda a parTE?/ A morTE/ é capaz de TanTas arTEs, / dançando conforme a leTra/ de cada moTE?”. A sedução dos efeitos sonoros pacifica e amplifica aquilo que o poema pergunta: a morte, sendo um mestre, será mesmo capaz de atuar (arte, dança, letra, mote) em todos os lugares, tempos e contextos (em toda a parte)?
No poema de Machado, a morte vem da Alemanha, sai do poema de Celan e ganha o mundo, “leste, oeste,/ sul/ e bandas do norte”; “Nos trópicos,/ por exemplo, tem rosto sombrio,/ trágico”; na penúltima estrofe, um paralelo refaz o vínculo entre a morte alemã, europeia, e a morte brasileira, tropical, severina: “A morte,/ grande intérprete/ na neve/ de palcos distantes,/ no chão duro/ deste meu agreste”. Diferentemente do poeta prisioneiro do Lager, o poeta brasileiro, no século 21, responderá ao verso inicial — “A morte é um mestre em toda a parte?” — com uma reticente assertiva: “Com certeza: um triplo/ ou quádruplo/ sim…”. Duro e cruel, o poema diz que, sim, a morte atuou como “grande intérprete/ na neve/ de palcos distantes”, mas “ator magnífico”, incontestável “mestre/ de mil disfarces”, continua atuando no agreste, nos trópicos, em toda a parte e a todo instante, sob disfarces e entrelaces.
A oitava estrofe provoca: a morte é “Superior ao ponto/ de não recusar/ o Oscar deste ano,/ do próximo/ ou de qualquer outro,/ sob vaias/ afinal não letais/ de críticos severos,/ hiper-adornianos”. Aqui entra em cena o aspecto da espetacularização da morte pela indústria cultural (via cinema ou não). Não importa que a alusão do poema de Lino Machado seja ao filme Guerra ao terror (vencedor do Oscar de 2010) ou a outro filme: à morte, “ator magnífico”, as vaias não atingem, porque, afinal, a morte é não letal, a morte não morre. E também não importa, para a morte, que as vaias venham “de críticos severos,/ hiper-adornianos”. A morte paira, quer em perspectiva metafísica, quer em perspectiva histórica, acima dos homens.
Adorno fala, em Dialética negativa, da banalização e do esvaziamento com que a indústria cultural se apropria da morte. A morte é transfigurada em espetáculo, dá lucro, pacifica as consciências (a partir de catarses aristotélicas, purgativas, não críticas) que, tranquilizadas, acabam por desrespeitar aquilo que apenas aparentemente parecem querer homenagear: os mortos. Em “Morrer, hoje”, registra, em tom aporético: “A morte nos campos de concentração tem um novo horror: desde Auschwitz, temer a morte significa temer algo pior do que a morte: o que poderia ainda existir nele que não tivesse morrido?”.
Celan e Machado recifraram esse tema dolorido em versos. O drama e o trauma de um encontram eco e solidariedade em outro. Em Machado, o disfarce se faz na dança dos versos polimétricos, na disseminação de rimas (“quANdo for preciso,/ tANto quANto/ galANte/ disparANdo/ algUNs sorrisos”), nas imagens de representação (“mestre que atua/ para a minha admiração/ e a tua”, rosto sombrio e colorido, grosseiro e galante, ator magnífico, ene nuances, entrelaces, grande intérprete etc.), mas sobretudo no disfarce anagramático que liga “morte” e “mestre” e tem seu ápice numa palavra do penúltimo verso, que arremata a ideia de que a morte interpreta em quaisquer palcos que “ainda nos reste(m)”. Este “reste(m)” é um anagrama (logo, um disfarce) perfeito da palavra “mestre”, em que, por sua vez, se inscreve a “morte”. O poema, aliás, se abriga sob o disfarce-mor, no título do livro: Sob uma capa.
Mais do que um engenhoso jogo verbal, o poema emula a ideia de superioridade da morte, indiferente às vaias “de críticos severos,/ hiper-adornianos”. Para Adorno, a arte é memória da dor e pensamento de resistência, é um enigma, cujo conteúdo de verdade pode ser desentranhado por um olhar “severo”, objetivo, lançado às coisas, às pessoas, aos conceitos. Quando o poema transforma o “mestre” em “reste(m)”, parece afirmar que a morte é, sim, um mestre (mestre do mal, da dor, de violência, da finitude, de genocídios). Mas o poema afirma que também a arte, com seus enigmas, se perpetua. Já que a morte e a arte — mestres — atuam por toda a parte, uma atitude ética é tentar fazer com que o que reste de Auschwitz sejam poemas como esses, de Celan e Machado. A arte, em síntese: mestre da morte.