Do seu canto no Alentejo, a região cuja única sombra vem do céu e que abriga imensos monumentos megalíticos, Afonso Cruz revela-nos algumas das facetas de artista-criador. Como definir o inventor? Das pedras à obra, sem fugir à circularidade eterna em torno de um mistério central, cria-se a partir de qualquer coisa. Portanto, imagino Cruz a passar de um laboratório a outro, munido de elementos simples como água, malte, lúpulo e fermento para atingir o resultado de “Reinheitsgebot” (princípios da lei da pureza) na fabricação em sua microcervejaria ou na elaboração de livros e desenhos.
Em um trabalho que não comporta limites estéticos ou técnicos, Afonso Cruz alcança o leitor com sua prosa marcada por um sentimentalismo sem hipérboles, a reavivar sentidos dormentes. Impulsionados pela força do pensamento intuitivo como rota imagética e até mesmo espiritual, os livros de Cruz percorrem os universos infantil, infantojuvenil e adulto, havendo sido agraciados com prêmios, dos quais se destacam o Castelo Branco (2010), União Europeia (2012), Time Out/Melhor Livro (2012), Sociedade Portuguesa dos Autores (2014), dentre outros. No Brasil, seus livros mais recentes são os romances Flores e O pintor debaixo do lava-loiças.
Nascido em Figueira da Foz, o autor tem formação em Belas Artes e é, além de escritor, ilustrador, cineasta, músico da banda The Soaked Lamb e pai de dois meninos.
• Os títulos dos seus livros são sempre originais e marcantes. Você começa ou termina por eles?
Depende, por vezes tenho o título ao início, outras só surge no final. Mas tento que sejam títulos apelativos. Para quem não conhece o autor, é tudo o que temos: uma frase, por vezes uma palavra. É importante que tenha algum impacto e, que, por vezes, seja iluminador do conteúdo.
• Em Flores, você desenvolve uma biosfera de personagens inusitados, identifica-se com algum ou alguns deles?
Com todos. Um escritor escreve sempre a partir da sua experiência. Manoel de Barros dizia que “não saio de dentro de mim nem para pescar”. E Horácio que “nada do que é humano me é alheio”. Eu parto de mim, evidentemente, e todas as personagens sou eu de algum ângulo. Mesmo os assassinos. Mesmo os santos.
Acho importante questionar. E nada melhor do que a ficção para o fazer. É da ficção que nasce toda a nossa realidade.
• Na Alta Amazônia, localizada no Equador, os moradores de Ávila se reúnem para relatar as suas experiências com outros tipos de seres no contexto diário e estas conversas se dão enquanto bebem cerveja de mandioca com os parentes e vizinhos. O ritual em torno da cerveja facilita os canais de comunicação? O seu livro Jesus Cristo bebia cerveja trata desta magia?
O álcool é uma maneira de sociabilizar. Como tantas outras. As drogas sempre fizeram parte da nossa religiosidade antes de serem meramente recreativas. Mas, sem dúvida que, algumas delas, promovem o contacto social. A cerveja também. Mas, mais do que isso, é uma forma de conhecimento. Pelo menos, o seu fabrico. Uma pessoa faz cerveja e fica mais sábia.
• Os sonhos penetram na realidade e vice versa — a isso chamaríamos de imaginação? As crianças e os jovens são diferentes dos adultos nestas danças, nestes sonhos combinatórios?
Os adultos estão mais enferrujados no que respeita à fantasia. Benjamin tem uma frase notável, de que a primeira experiência que a criança tem do mundo não é a de que “os adultos são mais fortes, mas sua incapacidade de magia”. Dito isto, acho que a realidade e os sonhos são mais ou menos o mesmo tecido e resta-nos aprender a tecer essa imaginação conjunta. Porque a realidade que conhecemos não passa da concretização de sonhos.
• O pintor debaixo do lava-loiças é um livro que foi transportado em você de um tempo para outro tempo?
De alguma maneira, sim. Uma memória de infância que me contaminou, que me agarrou pelos cabelos e me obrigou a escrevê-la. Creio que somos camadas de tempos e que vamos passando uma chama olímpica. Vamos fazendo o possível para que o fogo não se apague, de geração em geração. Quando escrevi O pintor debaixo do lava-loiças estive a escrever a história dos meus avós que esconderam um pintor judeu na sua cozinha durante a perseguição nazista, mas, mais do que isso, estou a perpetuar a memória. A minha, a deles, a nossa. Porque todos os dias há pintores debaixo de lava-loiças.
• Quais são os melhores mundos possíveis?
Epicuro achava que era um jardim com amigos. Eu concordo com ele.
• O mundo carece de novas enciclopédias? Podem elas provocar uma reviravolta dos significados?
O mundo precisa de enciclopédias falsas, para perceber que as verdades que nos assolam, não passam de coisas relativas. Acho importante questionar. E nada melhor do que a ficção para o fazer. É da ficção que nasce toda a nossa realidade: as cadeiras onde nos sentamos, os copos por onde bebemos, as tesouras, os martelos, etc., em tempos, foram ficção, imaginação. Hoje, são a realidade, a trivialidade. Mas foi preciso imaginar, criar, pelo menos nas nossas cabeças, enciclopédias inventadas.
• A biblioteca é capaz de conter o universo?
Sim, porque, apesar de os livros serem finitos, as interpretações de cada livro são infinitas. Dependem dos leitores.
• Você tem um livro de ilustrações, Capital, baseado no original por Marx. Um menino recebe um cofrinho, um porquinho de louça, com um corte nas costas para que possa engordar com capital. Entretanto, há quem diga que o capitalismo seria uma invenção prussiana de mil gavetas e mil espelhos, uma desculpa para não encararmos os verdadeiros males humanos. Será?
O capitalismo é muito mais antigo. Existe desde que apareceu a sedentarização. Os nómadas não acumulavam, não tinham propriedade privada nem trabalho alienado. Mas o livro Capital é sobre a inversão das prioridades. Não se vive pelo prazer de viver, mas pelo acúmulo e consequente prazer futuro. Prazer, que, provavelmente, nunca virá a acontecer. As coisas mais importantes da vida não são capitalizáveis: o amor, a amizade. Não há nada mais longe do dinheiro do que as coisas que realmente nos importam. Um amigo que é pago para ser nosso amigo não é amigo. O capital anula o que mais importa nas nossas vidas.
Eu parto de mim, evidentemente, e todas as personagens sou eu de algum ângulo. Mesmo os assassinos. Mesmo os santos.
• A verdadeira revolução seria abolirmos as palavras?
A verdadeira revolução seria sairmos para a rua. Mas com as palavras certas.
• Em Sobre literatura, Umberto Eco menciona que “O simbólico torna-se um efeito de sentido produzido pelo texto, e a tal título qualquer imagem, palavra, objeto pode assumir a valência de um símbolo”. Deve ser esta a intenção do escritor, produzir símbolos a serem decodificados pelo leitor? Ou existiria um plano mais acima, ou plano nenhum?
Depende dos autores. Eu gosto que o autor tenha ideias e não dependa exclusivamente do leitor. Essa dependência faz com que um livro seja tão relevante como borras de chá. Há bons livros assim, mas parece-me de alguma maneira aleatório. Não tenho nada contra a aleatoriedade, mas isso significa que olhar para as nuvens ou para um livro é igual. Para mim, não é, acho que um autor deve ser mais do que borras de chá.
• Também Eco sugere que “Borges superou a intertextualidade para antecipar a época da hipertextualidade, na qual não somente um livro fala do outro, mas também se pode, do interior de um livro, penetrar em um outro”. Como funciona este processo para você?
De todas as maneiras possíveis. Faço o que posso para que as minhas personagens percorrem livros diferentes, com referências diferentes. Esse é o grande trunfo da literatura. Pode fazer magia. No mundo de todos os dias, eu só posso pôr um litro de água numa garrafa de água de um litro. Com a literatura posso fazer o impossível. Com a ironia consigo dizer que uma pessoa é bonita e isso significar que ela é feia. Corresponde a dois litros de água dentro de uma garrafa de um litro. A metáfora, por exemplo, consegue feitos mais surpreendentes.
• No estranho jogo, existe na literatura uma história de influências ignoradas? Isso importa?
Importa. Algumas pessoas irão reparar. Acontece-me com frequência.
• De que modo as suas andanças pelo mundo afetaram a sua criação artística até agora?
De todas as maneiras possíveis. As experiências, quaisquer que sejam, são fundamentais para o nosso crescimento e para a consequente partilha. Todas as ideias são viagens. Saímos do nosso ponto de vista fixo e andamos à volta de um objecto ou conceito. Não há forma de conhecimento que não seja uma viagem. Umas literais, outras subjectivas.
• Acontece de considerar fictícias histórias que outros consideram verdadeiras, e vice versa?
Na literatura é irrelevante. Interessa-me o conteúdo e não é importante se aconteceu ou não. Crime e castigo ensina-me tanto quanto um ensaio de filosofia ou o jornal do dia.
• Raimundo Carrero em seu livro Minha alma é a irmã de Deus recomenda a leitura daquele romance em determinados horários. No seu caso, você teria recomendações de horários ou sazonais para alguns dos seus livros?
Não recomendaria horários. A leitura, para mim, é um espaço de liberdade. É tão válida à noite quanto de manhã, tão boa ao final da tarde quanto a fazer cambalhotas.
• Os seus livros acabam por dizer o que têm a dizer?
Nunca. Espero sempre que sejam, como Umberto Eco dizia, obras abertas. Só assim, sujeitas a constantes interpretações, podem continuar vivas.
• Discute-se que vivemos em sociedades polarizadas. Os seus livros ocorrem em cenários diversos e nota-se a influência oriental. É compatível dividir a humanidade entre Ocidente e Oriente?
De alguma maneira, sim. Vivemos de costas voltadas e é difícil compreender o outro. Precisamos de viagens, sejam literárias, jornalísticas, ou outras, mas a perspectiva será sempre uma ferramenta essencial para a paz. É importante que os escritores tenham esse papel, de ponte entre culturas, porque isso é pacificador.
Não há nada mais longe do dinheiro do que as coisas que realmente nos importam. Um amigo que é pago para ser nosso amigo não é amigo. O capital anula o que mais importa nas nossas vidas.
• Em seu fascinante livro, A boneca de Kokoshka, ainda inédito no Brasil, o protagonista constrói uma boneca para quando o amor acaba. No caso da escrita, os livros equivalem ao papel da boneca no enredo original?
Pode acontecer, porque os livros podem ser tudo. Mas mais do que papel. A educação cria seres humanos. Faz com que o papel da cultura ganhe outras dimensões e crie seres humanos. Sem cultura, não é possível.
• Você é um autor multimídia, com experiência em desenho gráfico, ilustração, música. Devemos pensar que o escritor do século 21 deve se habilitar em diversas áreas para alcançar o público? O futuro do livro (e do escritor) depende de convergências?
Sempre houve autores polifacéticos. Não creio que seja uma tendência moderna. Alguns serão mais especializados, outros menos. No final, haverá uma balança qualquer a pesar as duas tendências. Muito provavelmente, o resultado será um empate.