Nuno Camarneiro começou na literatura escrevendo textos breves para revistas e coletâneas. No meu peito já não cabem pássaros (2011) é seu livro de estreia como romancista. Uma prosa fragmentada em que apresenta três histórias diferentes: Karl — personagem do romance Amerika de Franz Kafka; Jorge Luis Borges — o escritor argentino e sua cegueira; e Fernando Pessoa — o escritor português e a memória afetiva com Lisboa. Debaixo de algum céu (2013) ganhou o Prêmio Leya, considerado um dos mais importantes em Portugal. A história se passa num edifício, numa cidade junto à praia, onde as personagens em seus apartamentos vivem dramas pessoais enquanto uma tempestade os deixa sem luz entre o Natal e o Ano-novo.
Se eu fosse chão: histórias do Palace Hotel é a mais recente obra de Camarneiro, em parte escrita durante uma residência para escritores em Nova York, em 2014. Três elementos dinâmicos constituem o romance: o tempo, a história e as personagens. Mais uma vez o autor trabalha com a fragmentação narrativa, ao focalizar em cada capítulo uma personagem diferente. As histórias se passam no Palace Hotel em Lisboa. Diferentes épocas são narradas em cada parte da obra, desde o início do século 20 até os nossos dias — 1928, 1956 e 2015. Os capítulos (que podem ser lidos como breves narrativas) se organizam em torno dos eixos temporais escolhidos pelo autor. Marcados por acontecimentos históricos ou peculiaridades políticas, sociais e comportamentais.
Entre as personagens estão homens, mulheres, políticos, sujeitos históricos, ex-soldados, namorados, amantes, prostitutas, suicidas, sofredores, escritores, artistas, turistas, visitantes e tantos outros tipos que podem frequentar um hotel qualquer.
Há também os funcionários que observam o movimento e os hóspedes do hotel. O espaço funciona como um grande organismo vivo e mutante que se modifica a cada personagem que recebe. Também o hotel abriga as modificações dessas personagens em relação aos seus próprios destinos.
A primeira história é a de Miguel, o recepcionista. Ele observa e descreve os múltiplos sujeitos que passam pelo hotel, com características de horário e de comportamento, modelados pela idade, estado civil, gosto pelo sigilo ou ainda timidez. Transitam em horários diferentes, têm preferências em relação à alimentação e interação com o espaço e com os demais hóspedes.
Durante a noite chegam os que não querem ser vistos, e deles as melhores gorjetas. Vêm sempre escondidos pelas golas levantadas, os chapéus enterrados até as orelhas ou os lenços abrato e não fazem perguntas.
Marcas pessoais
Nessa primeira parte — 1928 — são descritas personagens como o Professor Unrat e a Fräulein Rosa Fröhlich; Major François Cary ex-combatente da guerra e que usa uma prótese de madeira que supre o lugar da perna; María Luisa González de Garay y Urquijo que se isola por um vício e tentativa da abstinência, e o professor António de Oliveira que se tornaria o responsável pela pasta das Finanças do governo português e depois o ditador por décadas de opressão — “No mais que o país estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar. A cabeça alta, António, alta. São sempre os mais mansos que os heróis”. Há também um embaixador, três homens refletindo sobre a vida, um morto e sua sobrinha e um quarto vazio, que mesmo assim ainda é habitado por todas as presenças que lá estiveram e deixaram suas marcas pessoais no chão, nas paredes e na memória dos objetos. “Mesmo depois de limpo, das camas feitas, da lixívia atacar o soalho e as louças, há marcas que ficam e contam histórias.”
A segunda parte — 1956 — abrange uma nova sequência de quartos. Agora, são narradas histórias do segundo andar. Começa com Dennis Sanders, que havia assistido de um porta-aviões à detonação da bomba termonuclear no atol de Bikini. No outro quarto, quatro homens jogam pôquer em torno de uma mesa. Alison e Elisabeth, que vivem um relacionamento amoroso na clandestinidade, estão viajando juntas. Escrevem romances que, pela ausência de personagens masculinos que sejam apaixonantes, nunca serão publicados. Também os irmãos Sárkány — Ábel e Kaín, o primeiro sempre receoso e deixando o segundo passar à sua frente em tudo. Para evitar problemas. Entre as histórias de abandono, amor, medo e morte há também a narrativa de Arlindo, maître d’hôtel, que se considera “um amante experimentado, que dos mais leves indícios recolhe a informação necessária e age de forma consentânea”. Assim deve agir o bom empregado de mesa.
A terceira e última parte é o ano de 2015. Gonçalo ocupa o quarto 301, como companhia tem a sua dor. Foi abandonado pela amante e julga-se culpado por “amar na contramão”. Há neste andar, o Professor Ricardo e Margarida a flertar com a filosofia, a arte, a idade e o desejo. Rui e Paula são atores que precisam viver a paixão e a culpa como se fosse na vida real. Amanda que não é nem inteligente, nem especial, segundo ela mesma, tem um caso com Henrique, que também não é inteligente, mas é simpático. E Rita, a camareira, que arruma os quartos e pensa sobre o amor. “Os amores confundem a gente, é o que é.” — pensa Rita enquanto aspira sob as camas, dobra cobertas e deixa os ambientes limpos. Ela sabe dos amores que passaram em cada lençol do hotel.
Três andares de quartos, espaços onde as mais diversas histórias acontecem e personagens deixam um tanto de si. Em O romance português contemporâneo (2012), Miguel Real, escritor e ensaísta português, delineia características para a geração de escritores a que pertence o autor de Se eu fosse chão: há na produção portuguesa de hoje uma pluralidade vasta de temas, estilos, gêneros. Sua forma de construir personagens é peculiar, toma da literatura e da história figuras para dar-lhes uma vida privada, percepções de mundo e da humanidade, sensações e ideias. Mistura nos dramas pessoais de cada figura ficcional, os mais antigos axiomas da humanidade: o medo da morte, o desejo do corpo, a validade do amor, a sabedoria do esquecimento e a manutenção da memória.