Em 24 de agosto de 1954, no meio a uma elevada onda de denúncia de corrupção, o presidente Getúlio Vargas suicida-se com um tiro no peito. A partir de então começa uma história republicana inimaginável. Depois de uma breve crise sucessória, o país cai na euforia dos anos JK, para logo se perder em mais de vinte anos de ditadura, até voltar à efêmera esperança no bojo da candidatura de Tancredo Neves. Esta morre cedo diante dos desacertos econômico de Sarney e da alegoria marqueteira de Collor. Move-se a história pelo deslumbre improvável de Itamar e os ajustes econômicos de FHC até pousar na perspectiva de uma justiça social ampla e salvadora.
São sessenta anos revisitados sinteticamente por Eliana Cardoso em seu novo romance, Nuvem negra. A gesta brasileira, no entanto, é apenas cenário para uma discussão maior: como toda esta utopia histórica tocou a vida do cidadão comum? Aí entram os antagônicos protagonistas do enredo. Manfred Mann, um engenheiro de intensa sensibilidade perplexo e perdido diante dos acontecimentos que lhe envolvem. Lotta, uma incorrigível ativista que até o fim acredita na militância política como instrumento de mudança do mundo. Kalu, uma garota assediada pelo pai e que enfrenta as intempéries de peito aberto e constrói o próprio destino.
Estas pessoas, pelos caminhos tortos que o país oferece, terminam por se encontrar em Manaus já no início do século 21. Este é o espaço ideal para olhar de longe a trajetória que viveram e o futuro que precisam construir. As conturbações políticas e sociais ainda batem às portas dos personagens, mas eles reagem, e são movidos mais pelo inventário de perdas que carregam do que pela necessidade intrínseca a cada um.
Toda esta operação cria uma forte camada psicológica nos personagens e os torna sínteses de um povo que se construiu a partir de traumas institucionais. Destarte, voltando à pergunta inicial — onde se enquadram as pessoas dentro do curso histórico? —, Eliana toca na ferida ideológica que atinge a todos. As decisões políticas interferem sim na vida do homem comum e é necessário que ele reaja para não ser engolido pelo sistema.
A autora, entretanto, não faz um romance político ou panfletário. E nem sequer um romance histórico. Seu objetivo é refletir sobre a história recente e medir suas influências. Daí a forma sintética com que trabalha a trajetória política brasileira e mesmo as vivências dos personagens. Tudo é dito com limites invioláveis de palavras, alinhavados com apenas o necessário para conduzir o leitor pelos caminhos da trama, sem os entediantes e longuíssimos discursos explicativos tão comuns em narrativas do gênero.
Assim é sintetizado o ambiente político americano no final da década de 1960:
Ela via um jovem com muito medo, fragilizado por muitas perdas, mas que ficaria bom, e o convidou a voltar ao consultório para procurar entender melhor suas ansiedades e continuar os medicamentos. Manfred não voltou para a consulta seguinte. Preferiu se juntar aos colegas num protesto contra a Guerra do Vietnã. Participou de passeatas e aplaudiu as manifestações dos negros em reação ao assassinato de Martin Luther King. Foi rebelde por um verão.
A autora, entretanto, não faz um romance político ou panfletário. E nem sequer um romance histórico. Seu objetivo é refletir sobre a história recente e medir suas influências.
Jogo constante
E tudo transcorre nesse ritmo, num minimalismo que orienta e conduz o leitor pelos caminhos nem sempre iluminados da trama. Há um jogo de constantes surpresas quanto a previsibilidade dos personagens. Manfred tem tudo, inclusive substância cultural e um diploma de engenharia de uma universidade americana, para ser um homem brilhante, um líder de seu grupo social, mas não chega a tanto. Lotta se prepara para ser uma revolucionária socialista, mudar a face de um país injusto e desigual, mas também deita por terra seus sonhos e desejos. Kalu, moça pobre do Norte do país, bolinada pelo pai e refugiada numa pensão não lá honesta, se destina à prostituição, mas se faz chef de cozinha.
Não que todos fracassem, ou decepcionem o leitor ao driblarem os destinos previsíveis, como perfeitos anti-heróis. O país, ou melhor, sua história é que vai desenhando novos possíveis futuros. Sem maniqueísmo barato — pobres bons e ricos malvados —, Eliana nos revela as imensas e incontáveis possibilidades de vidas dentro de uma sociedade complexa. E o Brasil definitivamente não comporta ingenuidades.
Um antigo samba de Noel Rosa, Samba da boa vontade, compara o Brasil “a uma criança perdulária, que anda sem vintém, mas tem a mãe que é milionária”. O romance Nuvem negra, por sua intensa modernidade, confirma a atualidade dos versos do Poeta da Vila. Este país continua insistindo na capacidade de triturar pessoas, sonhos e riquezas. As cenas passadas em Serra Pelada ilustram bem essa determinante para o retrocesso. Os homens encontram e perdem fortunas com a mesma facilidade com que chegam e partem do lugar. Não deixam sequer histórias, pois as vidas são sempre recorrências de vidas anteriores. Nada é permanente neste eterno reino do provisório.
Eliana Cardoso é uma excelente malabarista das palavras. Com certa poesia e certo lirismo — um lirismo até melancólico — nos oferece uma visão real, às vezes cruel até, de uma gente nascida e crescida sob o signo da saudade de um futuro que está por vir, sempre por vir. É o nosso sebastianismo atávico em sua plenitude. Um romance que está muito além do mero exercício ficcional. Um texto brilhante.