A ardente clareira

"Rol" desenrola uma lista na qual o presente imediato recolhe e ecoa traços de toda sua produção poética
Armando Freitas Filho, autor de “Rol”
25/02/2017

Rol é série, lista. Descende do rotulus: rolo, diminutivo de rota: roda, pergaminho feito para girar nas mãos. E pode ser também, no léxico da caça, a peça de couro em que se ata a ralé para atrair falcões em voo. De forma premeditada ou não, conjuga-se aqui o serial e o venatório, o sentido e a sensação. Com efeito, a sínquise (mistura) de coisas aparentemente contraditórias integra o percurso poético de Armando Freitas Filho desde Palavra, lançado em 1963. E de algum modo são as palavras estas aves rapazes que o poeta busca atrair com o próprio punho:

devia usar a pena de dois séculos atrás
que casa melhor com o gesto incisivo
que imagino, preciso
com sua penugem de asa, com o bico
de um pássaro qualquer, de rapina
mergulhando, veloz e voraz, repetidamente
no gargalo, na garganta do tinteiro
para pegar, pescar a voz úmida, submersa
contínua e escura, que não pode secar

Talvez não seja necessário repisar, por estar sempre em evidência, o diálogo do poeta com antecessores como Drummond e Cabral e Bandeira e Gullar. Ou reafirmar sua importância para a recente revalorização crítica da obra da amiga Ana Cristina Cesar. Tais questões já são quase automáticas para quem começa a se familiarizar com a figura e a poesia de Armando. Mas na medida em que se adentra o universo freitasiano, percebe-se que o que repete também multiplica. E que sua filiação é inevitavelmente ambígua, pois combina “músculos e números/ entre cálculo e acaso”, como diz um poema do livro Cabeça de homem (1991).

Este Rol pode fazer realmente parte de uma trilogia involuntária, a considerar o clima parecido dos dois volumes anteriores. É o que se lê na orelha. Mas mais do que isso, Rol desenrola uma lista na qual o presente imediato recolhe e ecoa traços de toda sua produção poética. Persistem os temas da morte, do corpo, da palavra, depurados — mas não retificados — pelo tempo, já que o passar dos anos e a proximidade da morte recobram sua dose de lucidez. Persiste também o gosto pelas elaborações sintáticas, a música às vezes sinuosa, às vezes dura, o erotismo de assonâncias e aliterações que solicitam uma leitura em voz alta. Aqui a velhice, negando ao corpo o gozo do imprevisto e do improviso, exige um novo esforço, outra escrita:

os pés doem, os joelhos estalam
o imprevisto se perdeu, o improviso
idem um e outro não retornam
a quem atarraxado na cadeira
dura
de pregos, de faquir, dura
curvado, cruz de quatro pés
escreve, crava, incrível
dura a alegria, a raiva!

Acerto de contas
Os quatro poemas iniciais do livro, que ocupam as primeiras 57 páginas, são escritos nesse tom e propõem um acerto de contas com o tempo, o “esquartejador indiferente”. A precariedade do corpo se infiltra (e vice-versa) na precariedade da escrita. No entanto, continua sendo uma escrita erótica, atiçada pelo fogo. O poeta que escreveu um dia “pirar é arder/ a mil/ fora da pista/ com o narciso em chamas/ (…) carregando apenas/ mochilas cheias de mormaço” pode desacelerar o passo, agora, “mas a vontade/ de palavras continua, sedenta/ e viva, rabiscando, a ardente/ clareira”. O lamento nunca é apenas amargo, catastrofista; nem trata apenas do sujeito egoísta antecipando o próprio luto. A propósito, as figurações da violência (do tempo, da história, do presente), recorrentes na poesia de Armando — como reconheceu João Camilo Penna — tentam resistir ao domínio do sensível pelos poderes instituídos. Um caso exemplar é o poema À flor da pele, publicado originalmente como tabloide em 1978, e que reverbera no recente poema De roldão.

Voltando à ordem da leitura, no conjunto de poemas intitulado Na origem do mundo Armando substitui o compasso metafísico por uma gangorra sacana, também típica da sua produção, em que as coisas e os atos do sexo são renomeados: “Negrúmido róseo”, “cume escuro”, “a mão é minha/ mas se faz de outra”, “diluição granulada”, “Nem senti o colar/ de pérola dos dentes”. Mais do que um livro recheado de perspectivas sobre a morte, de encenações da velhice à mesa do escritório, então, o que esta recolha explicita é novamente o caráter contraditório, oximórico, ou ainda, a paradoxologia (termo usado por Marcelo Diniz) dos seus textos. O fio de Ariadne que atravessa a obra pode ser também um Fio terra — título de seu décimo segundo livro — o que não impede o curto-circuito (do corpo) da linguagem. Linguagem que “vai em frente, gaguejando” ou gemendo, sem sítio definido.

Rol é também um livro dedicado. Vários poemas são oferecidos a pessoas próximas, há curta ou longa-data. Destacam-se o Octeto para Cri, feito para a esposa Cristina (“sua pele é meu único luxo”); O caso Ana C., para Ana Cristina Cesar (“Cuido do meu cadáver”); Canetas emprestadas, dedicado à Ana Martins Marques (“como é bom ter de novo/ uma poeta chamada Ana”), além do poema Dois brincos para Laura Liuzzi e Alice Sant’Anna, e Sonho por escrito à Mariana Quadros. Tanto quanto as formas de reativação da poesia moderna, volta e meia investigada pelos críticos, pode ser produtiva uma análise mais detida da relação entre seus poemas e as jovens poetas citadas aqui. O que ajudaria inclusive a perceber mais de perto a contemporaneidade da poesia de Armando, que não apenas relê os clássicos (faltou listar Machado de Assis, o gago arquetípico, entre seus mestres) como parece disposto ao diálogo com as novas gerações.

O livro se encerra com a continuação da série Numeral, um conjunto de poemas numerados e datados, sem título, publicados em ordem cronológica, que aparece pela primeira vez em 2003, quando Armando reuniu sua poesia completa no volume Máquina de escrever (Nova Fronteira). Série que de algum modo responde e perverte as obsessões geométricas seriais de um João Cabral, embora se organize a partir de uma datação linear. Tudo o mais é confuso, difuso. Lembra, também, o desvario numérico do artista franco-polonês Roman Opalka, que dedicou os últimos 45 anos da sua vida à obra 1965 / 1 ao infinito. O Rol de Armando apresenta-se como um corpo entre sístole e diástole (movimento (nem só) matemático e (nem só) muscular: erótico), instante em que o tempo, extremo agora, dilata-se ao infinito.

Rol
Armando Freitas Filho
Companhia das Letras
144 págs.
Armando Freitas Filho
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1940. É autor de Palavra, À mão livre, 3×4, Fio terra, Raro mar, Lar e Dever, entre outros livros. Sua obra, até 2003, está reunida em Máquina de escrever e foi premiada com o Jabuti, prêmio Alphonsus Guimaraens, Portugal Telecom e Alceu Amoroso Lima — Poesia e Liberdade 2014.
Marcelo Reis de Mello
Rascunho