Alan Turing não foi apenas um dos criptoanalistas que ajudaram a quebrar o indecifrável código da máquina Enigma, dos nazistas, e um herói da Segunda Guerra Mundial. Suas teorizações, na primeira metade do século 20, inauguraram a ciência da computação e resultaram na máquina de Turing e na bomba eletromecânica, embriões do computador moderno. Antevendo o momento em que a inteligência artificial emparelharia com a humana, ele também inventou o famoso teste de Turing, pra verificar se uma máquina estaria pensando da mesma maneira que uma pessoa, a ponto de não ser mais possível distingui-la de um de nós. Philip K. Dick homenageou Turing no romance Androides sonham com ovelhas elétricas?, com o teste de empatia Voight-Kampff, pra verificar se alguém é mesmo uma pessoa ou uma imitação perfeita, um androide orgânico em tudo idêntico a um ser humano (na adaptação cinematográfica de Ridley Scott, um replicante).
Metaconexões afetivas
Ah, seu nome deveria ser legião. Na literatura e nos quadrinhos, no cinema e na tevê, o número de narrativas protagonizadas por computadores, robôs e androides conscientes é absurdamente grande. Do vasto acervo disponível, gosto especialmente da trilogia de contos de Brian Aldiss: Superbrinquedos duram o verão todo, Superbrinquedos quando vem o inverno e Superbrinquedos em outras estações. Dividida em três partes, é sublime e dolorosa a história do pequeno David, um androide que acredita ser um menino de verdade e não compreende por que o casal que o trouxe pra casa — seus pais — não o ama. Também gosto dessa delicada narrativa porque é uma das poucas que não repete pela enésima vez o insuportável clichê da máquina genocida, que após despertar se esforça ao máximo pra exterminar a raça humana.
Aonde nos levará a rápida e irrefreável evolução da máquina computacional criada por Turing? Um ramo da ficção científica batizado de cyberpunk, caracterizado pelo casamento de alta tecnologia e baixa qualidade de vida, garante que nosso futuro será um cosmo caótico, ou um caos cósmico. Os contos cyberpunks de Cristina Lasaitis, da coletânea Fábulas do tempo e da eternidade, reforçam essa percepção sombria, com seu emaranhado de metacidades, metaconexões e metapessoas mergulhadas num metaexistencialismo microbiochipado. O bordão de Sartre, “a existência precede a essência”, fará mais — ou menos? — sentido nos anos sessenta do século 22 do que nos anos sessenta do século 20. É o que sugerem os requintados sistemas cheios de falhas — repletos de apaixonados e desprezados artificiais, terroristas e piadistas virtuais — das premonitórias ficções de Cristina Lasaitis.
Se vivo fosse, o que Turing diria do atual debate em torno da conexão cérebro-máquina? Do ciberespaço e do upload mental? Concordaria ele com as premissas do cyberpunk? O que pensaria, por exemplo, do futuro proposto em Neuromancer, de William Gibson, romance de estreia que incendiou a vida criativa de uma legião de leitores e escritores? Obra inauguradora, transgressora — em muitos pontos ainda insuperável, mais de três décadas após seu lançamento —, seu legado é indiscutível: ainda hoje, falar em cyberpunk é falar em Neuromancer, e vice-versa. Desconfio que, se pudesse nos visitar, Turing ficaria fascinado — e apavorado — com a simples possibilidade de o computador evoluído promover as condições ideais pra emergência da matrix. E de uma ciber-sociedade assombrada por metafantasmas.
A hiperconsciência coletiva
Poucas pessoas no mundo conhecem tão bem o cérebro dos primatas, incluindo o nosso, quanto o neurocientista Miguel Nicolelis. Há décadas ele vem pesquisando e aperfeiçoando, nos Estados Unidos e no Brasil, as interfaces cérebro-máquina. Boa parte dessa empreitada pode ser conhecida no livro Muito além do nosso eu. Ficou famosa a experiência de sua equipe, em 2008, em que uma macaca rhesus, usando uma conexão neural, fez um robô humanoide andar, apenas com a força do pensamento motor. A macaca estava em Durham, na Carolina do Norte, e o robô em Kyoto, no Japão. Essa bem-sucedida experiência não foi um passo, foi um salto na direção do principal objetivo dos pesquisadores: permitir que tetraplégicos voltem a ficar em pé, andar, mover os braços e as mãos por meio de uma interface cérebro-máquina, uma prótese neural conectada a um exoesqueleto.
O próximo passo da neuroengenharia, que também será um salto, será conectar um cérebro com outro, ou com muitos outros — dez, cem, milhares, milhões —, possibilitando a transmissão de pensamento. Nicolelis batizou essa interface cérebro-computador-cérebro de brain-net. Será uma supermente, uma inteligência coletiva. Nesse momento de seu livro, as especulações do cientista equiparam-se às dos melhores ficcionistas: “Para mim não é nada surreal imaginar que futuras proles humanas poderão adquirir habilidade, tecnologia e sabedoria ética necessárias para estabelecer um meio através do qual bilhões de seres humanos consensualmente estabelecerão contatos temporários com outros membros da espécie, unicamente através do pensamento. Como será participar desse colosso de consciência coletiva, ou o que ele será capaz de realizar e sentir, ninguém em nosso tempo presente pode conceber ou descrever”.
Humanizando os humanos
Recentemente, recebi uma enxurrada de mensagens de oficinandos me perguntando “Mestre, você viu isso?” ou exclamando “Estamos perdidos!”, como se os cavaleiros do apocalipse tivessem acabado de surgir no horizonte. Estavam perplexos com a notícia de que um programa de computador havia escrito um conto. Pior, o conto havia sido aprovado na primeira etapa do Nikkei Hoshi Shinichi Literary Award. O fenômeno estava sendo noticiado no mundo inteiro, principalmente na imprensa popular (talvez porque na imprensa científica não representasse uma grande novidade).
O mais assustador, no caso dessa inteligência artificial japonesa que demonstrou certa “criatividade literária” ao escrever um conto, não é o fato de uma máquina se comportar igual a uma pessoa. O mais assustador é a evidência subjacente: em pleno século 21, milhões de pessoas perderam a capacidade criativa e se comportam igual a uma máquina, realizando tarefas mecanizadas na indústria, no comércio, em toda a parte. São pessoas robotizadas, que logo perderão também o emprego pra máquinas mais eficientes. Se quiserem se safar, as futuras gerações precisarão investir mais em características verdadeiramente humanas — empatia e criatividade — e competir nesse âmbito. Porque no âmbito do trabalho sequencial e repetitivo nós já perdemos feio. “Humanos, humanizem-se!”, é o que a IA está dizendo.
Em 2011, o jornalista ianque Brian Christian publicou um livro exatamente sobre esse tema, intitulado O humano mais humano. O livro trata do Prêmio Loebner, em que um júri humano conversa durante cinco minutos, às escuras, com interlocutores humanos e programas de computador. No final do diálogo — uma variação do teste de Turing —, os jurados precisam dizer se conversaram com uma pessoa ou um programa. Detalhe: se um programa for capaz de enganar trinta por cento do júri, ele será considerado uma máquina pensante. Nas diversas edições do prêmio isso ainda não aconteceu, mas vários programas já chegaram perto dessa marca e receberam o título de programa mais humano. Por outro lado, se uma pessoa não conseguir convencer os jurados de que é humana, ela será considerada uma máquina, e isso já aconteceu muitas vezes no Prêmio Loebner. E a pessoa que conseguir mostrar um grande potencial empático e criativo será eleita o humano mais humano.