A obra de arte sem aura: potências e impasses

No início de sua amizade epistolar, Mário de Andrade ofereceu um curioso conselho ao jovem estudante de medicina e desenhista amador, Pedro Nava
Ilustração: Rafa Camargo
30/09/2015

Arte desauratizada?
Principio, desta vez, relendo uma carta.

No início de sua amizade epistolar, Mário de Andrade ofereceu um curioso conselho ao jovem estudante de medicina e desenhista amador, Pedro Nava. O futuro memorialista-chave da literatura brasileira deveria assinar, com urgência, a revista Der Querschnitt. O fato de o alemão ser grego para o jovem Nava não constituiria um obstáculo insuperável; afinal, nas palavras de Mário, a revista valia pelas ilustrações dos quadros dos principais artistas das vanguardas europeias.

Criada pelo marchand Alfred Fleichtheim em 1921, a revista promovia a arte moderna: difundia a literatura de Proust, Joyce e Pound, reproduzia fotografias de telas de Picasso e outros tantos artistas contemporâneos, constituindo assim um museu imaginário para os que, do outro lado do Atlântico, não conheciam as obras diretamente.

O conselho de Mário evoca, involuntariamente, a desilusão de Alice — no país das maravilhas. Ao folhear um livro, ela não escondeu sua contrariedade, expressa numa pergunta que bem poderia estimular a assinatura da revista alemã pelo desenhista aprendiz:

(…) what is the use of a book without pictures or conversation?

Em alguma medida, no século 19 e nas primeiras décadas do seguinte, o diálogo de Mário de Andrade, Pedro Nava e dos inventores de culturas não hegemônicas com o cânone europeu, e, posteriormente, norte-americano, teve como interlocutor um intermediário em aparência onipresente: a reprodutibilidade técnica das imagens originais: gravuras, xilogravuras, litografias, por fim, fotografias e filmes — em todos esses casos, a percepção da obra de arte, no fundo, a própria experiência estética, formou-se num universo radicalmente desauratizado, constituindo o primeiro de inúmeros desafios da mímesis em contextos não hegemônicos.

Sem dúvida, você conhece muito bem a noção de perda da aura, proposta por Walter Benjamin em célebre ensaio; por isso, recordo somente um ponto.

Por favor, ao reler a citação, enfatize a ressalva crítica, evidente na formulação. Boa parte do que proponho exige que se vire pelo avesso essa reticência:

Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única no lugar em que ela se encontra (grifos meus).

Ora, como conceituar uma experiência estética que desde sempre conviveu com a fruição desauratizada de modelos não obstante adotados como autoridades?

Eis o desafio de todo inventor não hegemônico, especialmente se pensarmos na vivência oitocentista e no campo artístico das primeiras décadas do século 20.

Centros tratáveis
Contudo, em lugar de acomodar-se à facilidade dos binarismos, trata-se de tornar a experiência de pensamento sempre mais complexa.

Você já se deu conta de que, nesta coluna, evito usar os termos mais comuns: centro e periferia. A recusa se justifica por uma proposta: por que você não começa a pensar em termos de circunstâncias hegemônicas e não hegemônicas? Sobretudo, perceba o emprego do plural.

Explico-me.

Os conceitos de centro e periferia evocam imagens espaciais, sugerindo uma localização precisa e, em boa medida, estável, como se fossem pontos fixos numa relação paradoxalmente dinâmica. Pelo contrário, todo centro possui zonas periféricas e cada periferia apresente regiões centrais.

Os exemplos desse dinamismo são legião.

Retorno a Mário de Andrade.

Em 19 de maio de 1930, o autor de Macunaíma enviou uma carta mal-humorada ao amigo e confidente Manuel Bandeira. Não é que o Recife seria o palco da primeira exposição de obras de Picasso, em lugar da mera circulação de fotografias em preto e branco?

Mário acusou o golpe e deu o braço a torcer, pois o tom da carta não escondia a surpresa e a contrariedade com o acontecimento:

(…) São Paulo é o único centro tentável no país, está claro. Aí no Rio, sensibilidade moderna mesmo, isto é, capaz de se apaixonar pra comprar, se tiver uns três, terá? (…) Rego Monteiro tinha primeiro que vir para São Paulo, mas essa gente vive sonhando com a terra natal, parece incrível! Ora imagine você o Recife do sr. Gilberto Freyre comprando um desenhinho de Picasso por três contos (de catálogo)!!! Depois, se São Paulo não rendesse nada, então tentasse a capital da República e só depois, se de todo não quisesse pôr de banda o coração, então fosse pra terra natal (grifos meus).

A frase é bem intransitiva e nada amorosa: São Paulo é o único centro tratável; e, como se houvesse dúvida possível, o paulista Mário de Andrade completa com impaciência: está claro.

Sejamos justos: Mário pensava em termos financeiros; sem embargo, um triângulo nada sutil se arma, com sua hierarquia bem definida: São Paulo, a capital da República, a terra natal — e nesta ordem, pois, aqui, a ordem dos fatores altera, e muito, o sentido do enunciado.

Eis a complexidade típica da circunstância não hegemônica: de um lado, centro; de outro, periferia. E tudo ao mesmo tempo.

Museu de cópias originais
Façamos um pequeno desvio, visitando o Museo de Historia del Arte, bem no centro de Montevidéu.

Para um visitante, digamos, brasileiro, a experiência é desconcertante, pois o acervo do Museo é tão rico como abrangente; como se fosse uma miniatura de grandes instituições europeias e norte-americanas.

Benedict Anderson destacou o impulso especular na denominação de cidades na América colonial: a região de New England, as cidades de New York e New Hampshire. Nesses casos, o new se desmente: o alvo é antes a reprodução do old: o centro idealizado do qual se parte.

De igual modo, seria instrutivo observar as miniaturas que se espalham pelo continente, espelhando modelos a serem nem tanto emulados quanto pura e simplesmente imitados.

Pensemos no Teatro Municipal, do Rio de Janeiro, e seu esforço de evocar a Ópera Garnier, de Paris. Vejamos o Teatro da Paz, em Belém, e seu desejo de reproduzir o La Scala, de Milão. Tais miniaturas compõem uma metonímia, por vezes brutal, das assimetrias do sistema-mundo projetadas no espaço simbólico.

Referia-me ao Museo de Historia del Arte, de Montevidéu.

No Brasil, não dispomos de nada similar; no máximo, mencionaremos o Masp, essa reunião ambiciosa das obras menos felizes de alguns artistas canônicos.

Outro universo se abre no Museo de Historia del Arte: há um pouco de tudo em seu acervo.

O visitante é recebido por objetos do paleolítico, do epipaleolítico, do neolítico; encontra esculturas de figuração animal e humana, bastões variados, ornamentos e utensílios cotidianos: a chamada pré-história ao alcance dos olhos.

Na sequência, o visitante se depara com máscaras e esculturas africanas; objetos figurativos dos esquimós; vasos chineses e imagens japonesas; deusas e deuses da Índia e da Indochina.

E, como sempre, a vedete do acervo é a coleção egípcia, que impressiona pela qualidade da seleção: há desses objetos que fazem parte obrigatória de catálogos e de histórias da arte. O visitante brasileiro recorda-se de ensaio de Emir Rodríguez Monegal, no qual o crítico considerava a distribuição de renda e o acesso a uma educação de alto nível como sendo os fatores decisivos da sociedade uruguaia nas primeiras décadas do século 20: a Suíça sul-americana, por assim dizer. O acervo do Museo pareceria um instantâneo desse momento histórico favorável.

No entanto, o encantamento se torna suspeito quando o visitante descobre o famoso, como identifica o catálogo, Retrato de la Reina Nefertiti, datado do século 14 a.C., oriundo da XVIII dinastia. Um curto-circuito se instala: redescoberto pelo arqueólogo alemão Ludwig Borchhardt, e depois de uma acidentada história de peregrinações, o “Busto de Nefertiti” encontra-se atualmente no Neues Museum, em Berlim.

O mistério se esclarece facilmente: basta ler a nota introdutória da seção de pré-história do catálogo do Museu. O texto bem poderia ter sido escrito por Jorge Luis Borges.

Você julgará se tenho razão:

Los ejemplares que se exhiben son, en su casi totalidad, calcos patinados de preocupada y preciosista fidelidad por relación con los originales. (…) Dicha colección se hizo en 1951 (…). Terminada la misma y fallecido su autor casi inmediatamente, la Dirección del Museo precitado resolvió prohibir que se volvieran a realizar nuevas réplicas de aquellos modelos. Estos son de gran fidelidade y así resultan tanto del notable dominio artesanal como de la solvência que denuncia el conocimiento directo de los objetos.

Eis, então, a grande novidade do Museo de Historia del Arte: seu acervo é composto de cópias originais e não apenas pela preciosista fidelidad, mas, sobretudo, porque essas cópias são, rigorosamente, os originais das últimas cópias dos modelos originais! Nesse caso, a originalidade possível da cópia se reveste inclusive de um dado sombrio: com precisão detetivesca, o texto do catálogo informa que, após terminar a coleção das cópias, seu autor faleceu “casi inmediatamente”.

Está claro, diria Mário de Andrade: cópias originais.

O enredo pode tornar-se ainda mais borgiano. Recentemente, explodiu uma controvérsia sobre a autenticidade do Busto de Nefertiti. Alguns especialistas sugeriram uma hipótese incrível: a peça teria sido involuntariamente forjada pelo arqueólogo alemão. Isto é: ele experimentava com pigmentos antigos, a fim de reconstruir, hipoteticamente, a técnica de coloração egípcia. O Busto, no entanto, chegou às mãos do príncipe prussiano Johann Georg, que se encantou com a peça, deixando o arqueólogo numa saia justa. Receoso de ofender o príncipe, um renomado colecionador e, sobretudo, um pretenso erudito, especialista em artes plásticas, Borchhardt deve ter pensado: deixa a vida me levar, e, daí, viu-se obrigado a confirmar a autenticidade da peça.

Eis as voltas que a vida dá: se for assim mesmo, então a cópia do museu uruguaio é bem uma cópia original.

Original copy, aliás, é o título de instigante livro de Robert MacFarlane, no qual se discutem de forma inovadora as noções de plágio e de originalidade na literatura inglesa oitocentista, registrando um debate que posteriormente foi negligenciado, praticamente esquecido e que muito interessa aos inventores de culturas não hegemônicas. Esse debate teve em Oscar Wilde um defensor decidido do selfplagiarism como forma superior de criatividade: a leitura e a reescrita se afirmam como a cópia original de todo escritor de talento.

Coda
Saliento ainda que a potência da poética da emulação, noção que já discuti nesta coluna, permite fugir de um hipotético império da imitação, ao qual a mímesis teria sido reduzida. A imitatio nunca teve valor em si, consistindo antes em momento de um processo dinâmico que inclui o gesto posterior de aemulatio.

Hora de concluir retornando ao conselho de Mário de Andrade ao desenhista aprendiz, Pedro Nava.

Melhor: projeto anacronicamente o conselho nos primórdios da arte pictórica novo-hispana.

Para tanto, recorro a uma impressionante exposição, Identidades compartidas: pintura de los reinos. Territorios del mundo hispánico, siglos XVI-XVII. Tratou-se de uma autêntica exposição-pesquisa que apresentou para o grande público o trabalho de Juana Gutiérrez Haces. Em sua obra, a pesquisadora mexicana identificou o vocabulário pictórico comum ao império espanhol como um todo, mas isso sem negligenciar a presença tanto da tradição europeia, em sentido amplo, quanto do desenvolvimento de traços singulares aqui e ali no domínio novo-hispano.

A reunião de praticamente cem telas, associada a uma perspectiva multissecular, permitiu elencar formas e temas, assim como favoreceu o mapeamento de sua circulação transnacional por meio de novos suportes, especialmente a técnica da gravura.

Isso mesmo: você deve pensar nas fotografias da revista Der Querschnitt, pois o desafio da mímesis delineia o cenário de ambos os momentos históricos.

Não é tudo.

Num dos quadros, no canto direito inferior da tela, como se fosse um código sussurrado entre pares, o pintor novo-hispano inscreveu o termo-chave: aemulatio.

Eis a assinatura mais sugestiva, porque seu método de composição se confunde com a reciclagem do alheio.

Pura invenção — portanto.

De fato, a poética da emulação depende de uma operação estética e intelectual que deixe de lado de uma vez por todas a dicotomia imitatio versus creatio, e isso através da consideração de um terceiro termo, aemulatio.

A poética da emulação viceja nessa triangulação, implicando um modo próprio de resgate da inventio; um modo próprio porque deliberadamente anacrônico.

Trata-se de uma invenção operada, sobretudo, através da circulação transnacional de gravuras das correntes consagradas da pintura europeia da época.

Como disse, tal operação também poderia ter sido realizada por meio de fotografias da pintura europeia da vanguarda das primeiras décadas do século 20.

Eis bem o desenho da experiência estética nas culturas não hegemônicas: trata-se de uma vivência radicalmente desauratizada.

O desafio da mímesis exige uma nova atitude intelectual. É preciso abandonar o eterno retorno de uma deslocada melancolia, que somente tem olhos para uma tediosa “arqueologia da ausência”, que apenas sabe anotar, com paixão de entomólogo, tudo aquilo que não se encontra disponível no horizonte das culturas não hegemônicas. O truque perdeu a graça e a crítica impiedosa do outro finalmente se revela um constrangedor autoelogio.

Pelo contrário, em seu poema De um leão zen, Haroldo de Campos reciclou uma lição shakespeariana decisiva, inventando um método no qual a emulação é colocada no centro do palco de uma experiência estética desauratizada:

O olho não pode ver-se
a si mesmo.

O leão de ouro não deixa de ser ouro
do leão de ouro
o ouro leonado não deixa de ser ouro
aurificar-se é o ser do leão não-leão

O olho vê-se
no avesso do olho.

Silêncio: olho do furacão.

(Eis onde estamos: a questão toda, ninguém ignora, é descobrir como chegar ao olho do furacão.)

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho