Dom Casmurro: a obra-prima da reciclagem (5)

Principio agradecendo à paciência com que você me segue nesta longa série.
Ilustração: Carolina Vigna
07/07/2015

Evidências eloquentes
Principio agradecendo à paciência com que você me segue nesta longa série.

(Você ainda está aí, não?)

E prometo: entramos na reta final.

Recordemos, muito brevemente, o caminho percorrido.

Vimos que o mouro Otelo foi bombardeado com uma reunião nada desprezível de evidências. Todas falsas, você tem razão. Mas nem por isso uma reunião menos impressionante. No fim das contas, o que é mesmo a “verdade”?

(Num julgamento célebre, o acusado não soube responder à pergunta nietzschiana muito, mas muito avant la lettre: “o que é a verdade?”.)

O pajem Póstumo Leonato nada viu, tampouco ouviu qualquer diálogo que parecesse suspeito. No entanto, diante de um conjunto de indícios, caiu na armadilha de seu Iago particular — Iachimo, autêntico epistemólogo, às voltas com o exame consciencioso do estatuto das evidências, devidamente usadas para enganar o pajem.

O mouro executou Desdêmona.

O pajem ordenou o assassinato de Imogênia, porém seu comando não é obedecido.

Por enquanto, mais não acrescento.

Mas você começa a perceber as nuances das duas peças.

O que aconteceria na trama se o ciumento fosse, digamos, não um pária, tampouco um agregado, porém um Rei?

Vejamos.

Um pedido (não) é um pedido
Leontes, Rei da Sicília, Políxenes, Rei da Boêmia, são amigos de longa data — unha e carne. Irmãos, quase; o que um pensa, o outro antecipa; o que um deseja, o outro realiza. Por isso mesmo, com frequência, passam longas temporadas distantes de seus súditos, a fim de permanecerem fiéis à amizade que os une.

Na segunda cena do primeiro ato, essa é a situação. Políxenes demorou-se demasiadamente no palácio do amigo — “Já serviu de sinal por nove vezes o úmido astro ao pastor, dês que deixamos sem fardo nosso trono”[1]. Hora, portanto, de partir. Leontes procura demovê-lo, porém o Rei da Boêmia lança mão de argumento em aparência irrefutável:

Amanhã mesmo,
senhor, há de ser isso. Inquieto deixam-me
os meus receios sobre o que é possível
germinar ou nascer em nossa ausência.
Não sopre em casa algum vento maligno,
que me faça fizer: ‘Os meus temores
eram justificados’. (575)

Difícil opor à razão de Estado os motivos do afeto, contudo, voluntarioso, acostumado a ser o árbitro do próprio desejo, Leontes tira um coringa da manga, solicitando à esposa que se junte a ele na missão em tese impossível de persuadir o amigo a permanecer por mais tempo na Sicília. Somente agora, instada pelo marido. Hermíone se manifesta; aliás, bem ciente do efeito de suas palavras:

Esse ‘de forma alguma’ pronunciado
por uma dama é tão potente como
se dito por um Rei. Não resolvestes
ainda? Então, forçada sou a deter-vos
como meu prisioneiro, não como hóspede. (576)

A graça da Rainha enseja uma troca aguda de esquivas e elogios; por fim, Políxenes dá o braço a torcer e decide ficar. Agradecida, talvez encantada com seu poder de sedução, Hermíone completa o jogo de palavras com um gesto singelo. A indicação de cena reza:

(Estende a mão a Políxenes.)

Só isso: nada mais: uma demonstração de cortesia, obrigatória, em alguma medida, dada a concessão feita por Políxenes.

Ou não?

Pelo contrário, Leontes vislumbrou na atitude uma revelação tão inesperada como fulminante:

LEONTES (à parte): Muito quente! Muito quente!
Unir as afeições de tal maneira,
é unir, também, o sangue. Estou sentindo
‘tremor cordis’; o coração me dança,
mas não é de alegria.

(…)

Mas baterem palmas, beliscarem-se
os dedos, como o fazem neste instante,
permutarem sorrisos estudados,
como em frente ao espelho a, após, suspiros
soltarem, como toque de buzina
que a morte propalasse do veadinho…
Oh! tal acolhimento é-me contrário,
visceralmente, ao peito e ao sobrecenho.
Vem, Mamílio; és meu filho? (577)

A brutalidade da pergunta conduz a uma resposta igualmente brutal. Num dos giros mais violentos do teatro shakespeariano, Leontes não somente se assegura da infidelidade da esposa e da traição de seu melhor amigo, como também “descobre” que seu filho, no fundo, é o fruto proibido daquele conúbio, a evidência “incontestável” do adultério.

Cena emblemática: é indispensável que os atores enfatizem o divórcio, crescente, entre o discurso-delírio de Leontes e os gestos-protocolares de Políxenes e Hermíone. Isto é, eles não se tocam maliciosamente, muito menos se beliscam (!), ou trocam sorrisos estudados — essa antecipação das lágrimas poucas e caladas

A encenação deve acentuar a distância, a fim de sugerir a força desse “monstro de olhos verdes”, que se assenhora da consciência do Rei com a facilidade de que dispõe Leontes para traduzir sua palavra em ato e sua suspeita em fato.

(Você adivinhou: na próxima coluna, mostrarei como Machado de Assis recria essa cena em dois capítulos de Dom Casmurro. Já sabe quais são?)

Evidente: a palavra do Rei
Sem transição alguma.

Pois é: assim foi o transe de Leontes, e, num átimo, ele se encontra convencido — tudo se passa como se o destino tivesse reunido a primeira amiga e o maior amigo para armar uma insidiosa traição. E a terra não lhes foi nada leve, pois a prerrogativa real muito pode, até transformar ciúmes em provas incontestáveis.

Afinal, a palavra do Rei não vale como evidência por si só? Leontes crê que sim, e, por isso, dirige-se ao filho como se enfrentasse um inesperado inimigo:

(…) Meu violãozinho, caro,
caríssimo pedaço de mim mesmo!
Tua mãe não poderia… É então possível?
Instintos, teus impulsos no alvo acertam;
possível deixas o que nunca fora
sequer imaginado; ajuda encontras
até nos sonhos; vais encontrar aliados
no próprio irreal e ao nada te associas.
Depois te torna crível, pois te juntas
a alguma coisa… (578)

O leitor de Dom Casmurro se recorda da imaginação sem freios de Bento Santiago, viva, rápida, inquieta, e seus impulsos de grande égua ibera. Leontes, dono do poder, e, logo, da voz, não procura outra confirmação além de sua certeza — ora, para alguma coisa valerá ser Rei!

(Ou o narrador da história.)

Shakespeare, no entanto, puxa habilmente o tapete deste Rei.

Ao contrário de Otelo, não há nem sombra de um astucioso Iago ou de um modesto Iachimo. Exatamente o oposto tem lugar: todos contradizem o Rei, afiançando a virtude e a inocência da Rainha, e isso mesmo se arriscam suas vidas.

Eis o que diz Camilo, nobre siciliano, e conselheiro na corte:

Meu bondoso
senhor, curai-vos sem demora dessas
fantasias doentias; quase sempre
são muito perigosas. (580)

O nobre tampouco recua diante da cólera do Rei; mantém sua palavra e se recusa a cumprir a ordem que recebe de envenenar Polínexes. Tal desobediência civil o levará ao exílio, mas prefere testar a sorte a curvar-se a seu

(…) senhor, o qual, achando-se
em rebelião consigo mesmo, exige
de seus homens idêntica atitude. (581)

Mais atrevida é Paulina, a criada da Rainha. Ao pedir ajuda aos nobres sicilianos para defender sua senhora, explicita o que todos pensam:

Ora, meus bons senhores, ajudai-me,
que o podeis. Mais valor dás à tirânica
cólera dele do que à própria vida
da Rainha? Ela, uma alma tão graciosa,
que mais pureza tem do que ele ciúme? (588)

Serva de uma só patroa, Paulina não se deixa intimidar pela fúria do Rei:

LEONTES: Fora daqui, virago feiticeira!
Alcoviteira infame!
PAULINA: Não sou isso.
Tão ignorante sou de tal ofício
quanto vós em me dar esse título,
e tão honesta sou quanto vós, louco. (589)

Transformado em tirano, mas, de fato, tiranizado pelo ciúme que o obseda, Leontes não consegue apoio de seus súditos — que não se submetem a fantasias doentias. Nenhuma evidência é disponível, portanto, basta a autoridade de sua palavra para levar adiante a acusação à Rainha.

Levar adiante formalmente — bem entendido, num julgamento!

Evidências no tribunal
Em Conto de inverno, Shakespeare radicaliza a discussão iniciada em Otelo e aprofundada em Cimbelino, demonstrando que o estatuto da evidência depende da legitimidade conferida a quem fala, a quem acusa. Saber é poder, claro, Francis Bacon ensinou a lição; mas, aqui, o dramaturgo dá a volta ao parafuso, pois não é conhecimento que se erige em autoridade, porém, o poder mesmo que se atribui a o direito de esclarecer o sentido do que se deve conhecer.

Daí, o arco que se abre do “excesso” de (falsas) evidências a que o mouro Otelo foi exposto e o “excesso” de ausência de qualquer indício razoável apresentado ao Rei Leontes. Como uma ponte entre esses extremos, o pajem Póstumo Leonato foi enganado por evidências circunstanciais e indiretas.

Desse modo, Shakespeare alterou o ângulo do problema, multiplicando os pontos de vista, associando-os à posição social do “ciumento”.

Se não me equivoco, Machado de Assis reciclou as três peças na composição de seu romance-esfinge.

Não é tudo.

Arrisco, finalmente, a hipótese que estrutura meus exercícios de leitura: a segunda cena do terceiro ato de Conto de Inverno favoreceu o pulo do gato do autor de Dom Casmurro, pois a figura do Rei-“vítima”-procurador-juiz foi traduzida em impecável forma literária na prosa de Bento Santiago.

É isso.

No próximo mês aproximarei a cena do julgamento de Hermíone à escrita do casmurro narrador; afinal, já é hora de atar as pontas desta série de artigos.

Nota

[1] William Shakespeare. Conto de Inverno. Teatro Completo. Comédias. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 575. Nas próximas ocorrências, indicarei apenas o número de página.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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