A pesada sombra do passado

Obra de Patrick Modiano constrói a pré-história pessoal do autor, em cujo centro está a Segunda Guerra Mundial
Patrick Modiano por Fábio Abreu
30/07/2015

“Como qualquer pessoa que não tem terra nem raízes, tenho obsessão por minha pré-história. E minha pré-história é o período turbulento e vergonhoso da Ocupação.” Assim resume Patrick Modiano, Nobel de Literatura em 2014, sua pulsão. Nasceu em Paris em 1945, dois meses após o final da Segunda Guerra Mundial, portanto a pré-história é bastante imediata. É o que gerou, ao mesmo tempo, sua angústia e sua identidade. Não é difícil imaginar o peso de tal começo. O que não se poderia imaginar é o como o acúmulo de camadas de memória tomaria forma da melhor literatura.

Desde seu primeiro romance, La place de l’étoile (1968), ainda sem tradução, já ficou claro que havia perdido muito na Guerra, apesar de o fim dos combates ser anterior ao seu nascimento. Em toda sua obra, o que se vê é quanto ele e cada pessoa foram alterados por essa época limite, durante e após. Seus 30 romances, mais os roteiros de cinema, letras de música e livros infantis, têm sido objeto de estudo em vários livros e dezenas de artigos, mas Modiano nunca buscou celebridade. Quando recebeu a notícia do Nobel, surpreso, declarou que há 45 anos escreve o mesmo romance. Não é falsa modéstia, é prova de que sabe a que veio.

Nesse primeiro livro, que recebeu prêmios importantes, denuncia o antissemitismo doméstico francês que facilitou ao regime de Vichy a colaboração com os nazistas. Mas não trata de uma questão moral distante: Schlemilovitch, o protagonista, é um judeu francês que trabalha no mercado negro, em papel semelhante ao desempenhado pelo pai de Modiano durante a Guerra. Com esse romance, abriu-se a ferida de sua pré-história familiar, mas também a da França como um todo. Apesar de muito jovem — Modiano tinha então 23 anos —, demonstrou maturidade literária ao evitar qualquer julgamento moral. Tudo que se supõe sobre sua difícil relação com o pai pode ser verdade, mas nunca usou sua obra como arma. Sutilmente, fez até o contrário: o nome o protagonista é derivado da palavra “schlemiel”, que em ídiche significa “azarado”. Modiano sempre soube que as pessoas são muito mais o produto de suas circunstâncias do que de seu caráter.

Naqueles anos terríveis, por exemplo, Jean-Paul Sartre era meteorologista do exército. Quando não estava a observar o tempo, fazia suas anotações para O ser e o nada, publicado em pleno 1943. Após a Guerra, justificou seu silêncio afirmando que em 1943 ainda não era possível saber do que os nazistas eram capazes, atitude oposta a do seu igualmente renomado contemporâneo Albert Camus. Fato é que não nos é dado saber que papel cada um de nós teria desempenhado naquelas circunstâncias.

Fratura nacional
Nos últimos tempos vários autores, como Alan Riding, Frederic Spotts e Charles Glass, entre outros, têm ajudado a avaliar a herança moral — e amoral — da França colaboracionista. Patrick Modiano passou décadas nessa tarefa. Ronda da noite, publicado 24 anos após o fim da Guerra, investiga a natureza da Guestapo francesa e seu papel no saque à propriedade judaica. O protagonista trabalha tanto para a Guestapo como para a Resistência; sua ambiguidade moral refletia a fratura nacional. O livro recebeu elogios e protestos em igual medida, prova de que a ferida ainda ardia, 24 anos depois.

Todos os seus romances parecem histórias policiais, mas o final esclarecedor nunca acontece. Em vez disso, um narrador, cuja biografia imita em parte a do autor, tenta entender a história secreta da atmosfera em que viveu. Ele pode receber parte da identidade de Modiano, sua idade, seus pais, sua escolaridade incompleta, ou sua carreira. O narrador em Dora Bruder escreveu os livros de Modiano. Trata-se de um híbrido literário, provavelmente sua obra-prima, em que biografia, autobiografia e romance policial se fundem para contar a história de uma menina de 15 anos, filha de imigrantes judeus do leste europeu, que depois de fugir do convento onde estava escondida, acaba deportada para Auschwitz. Entre recortes de jornal, boletins de ocorrência policial e relatórios escolares, descobre-se o que já se intui desde o começo: Dora Bruder terminou em uma câmara de gás. Mas essas palavras não estão no livro. Ali se encontram detalhadas as ruas por onde ela deve ter passado feito sombra, as pedras do muro do convento onde ficou escondida, a janela do apartamento onde pode ter vivido. Tudo debaixo de chuva, neve, cerração, toque de recolher. Essas barreiras sensoriais, frequentes na obra de Modiano, mantêm autor e leitor do lado de fora, só observando.

Frases sem verbo nem predicado reforçam a sensação de que o leitor não “vê” diretamente a cena, apenas “ouve” o que o narrador vê.

Uma velha estação pequena, amarela e cinza, tendo de cada lado alambrados de cimento trabalhado e atrás desses alambrados o cais onde desci da maria-fumaça.

O detetive de Uma rua de Roma, amnésico há muitos anos, visita locais distantes enquanto tenta remontar o quebra-cabeças de sua vida pregressa. O leitor descobre onde o narrador está a partir destas frases, como se em uma viagem de trem, despertasse a cada vez em outra estação inesperada.

Não muita coisa na lata de biscoitos. Um soldado de chumbo, com um tambor. Um trevo de quatro folhas colado no meio de um envelope branco. Fotos.

O estilo de Modiano é de tal leveza, que suas palavras parecem descoladas do papel, impossíveis de se capturar, assim como os personagens procurados. Forma e conteúdo indissociáveis.

O narrador em Primavera de cão é um escritor que descreve o tempo em que passou catalogando o trabalho de um fotógrafo, Francis Jansen, que mais tarde desaparece. Tudo sobre Jansen é estranho, incompleto, e o leitor percebe desde o começo que nunca irá saber o que falta. A atmosfera do estúdio fotográfico é vazia, silenciosa, os outros personagens nunca se explicam completamente, e o fotógrafo, agora desaparecido, já havia passado a Guerra escondido. Em Flores da ruína o próprio narrador avisa:

Sem perceber, comecei a escrever meu primeiro livro. Não foi vocação nem dom que me fez escrever, somente o enigma posto por um homem que eu nunca conseguiria encontrar outra vez, e por todas aquelas perguntas para as quais nunca haveria resposta.

A despeito da ausência de solução dos enigmas, Modiano utiliza com destreza os recursos da ficção detetivesca para explorar zonas nebulosas, de forma semelhante a Paul Auster na Trilogia de Nova York. “Conheci Francis Jansen quando eu tinha dezenove anos, na primavera de 1964”, a primeira frase de Primavera de cão dá ao leitor a falsa sensação de que outros detalhes precisos ainda serão revelados. Aos poucos, o clima da época, da casa, da rua onde algo aconteceu, tomará o lugar dos fatos. Ele toma emprestado dos romances de espionagem, filmes de detetive, filmes noir, mas somente para preencher os hiatos na vida das pessoas, aqueles que nunca terão explicação. Já que a narrativa histórica só pode ser uma tentativa, Modiano planta sua ficção no território em que História e pesquisa não chegam. Seu relato convida o leitor a compreender a complexidade e ambiguidade do período, e a se lembrar daqueles que não têm quem deles se lembre.

 

Nas ruas de Paris
Aristocratas improváveis, excêntricos adoráveis, atrizes incompetentes, ninguém é o que parece ser. Nem mesmo Paris, personagem essencial na obra de Modiano, sempre se recusando a revelar segredos do seu passado. “Tenho a impressão de que estou inteiramente só, ao fazer este paralelo entre a Paris daquele tempo e a de hoje, única pessoa a lembrar-se de todos esses detalhes”, diz o narrador de Dora Bruder. Paradoxalmente, o autor é ao mesmo tempo um parisiense devoto e um que não vê qualquer beleza na Paris de hoje. Identifica-se com a cidade, a quem dedica grande atenção ao detalhe. Em seus romances, Paris, bem como os personagens, aparece estrangulada pelos nazistas, seja por ruas fechadas, pelo toque de recolher, ou pelo silêncio do medo. O enorme interesse de Modiano pelas ruas de Paris, especialmente as da periferia, lembram Walter Benjamin, que acreditava que toda uma civilização podia se materializar a partir dos restos do passado parisiense. Em Flores da ruína, o narrador coleciona referências geográficas precisas da Paris de hoje, na tentativa de solucionar um duplo suicídio acontecido em 1933. Com esse recurso simultaneamente metaliterário e autoficcional, ele revela que a partir de suas anotações nasce não somente o livro em questão, mas toda sua carreira literária.

Caminho pelas ruas vazias. Para mim elas continuam do mesmo jeito, mesmo à noite, à hora dos engarrafamentos, quando as pessoas correm na direção das bocas do metrô”, confessa o narrador de Dora Bruder. Paris não é um local, é um ser. Mesmo um leitor que conheça bem a cidade sentirá o estranhamento causado pelas histórias que se desenrolam (ou enrolam-se) neste ambiente, cheio de sombras ameaçadoras. A ficção de Modiano tem a obsessão de provar que Paris testemunhou um crime, mas recusa-se a passar julgamento moral sobre os suspeitos. Recusa até mesmo qualquer sinalização psicológica, qualquer acesso fácil ao passado interior. Para provar que houve o crime, o autor se faz valer de três instrumentos: o tempo, como os trilhos de um trem; um pai, como a estação final; e a atmosfera, como o próprio vagão dentro do qual tudo acontece.

Remissão da pena aponta um crime sem jamais mencioná-lo, porque a testemunha é o próprio narrador, criança na época em que o crime aconteceu, e que portanto não compreendia o que testemunhava. A história gira em torno das memórias de infância de um homem que, aos poucos, se dá conta que os amigos adultos de seus pais ausentes provavelmente eram criminosos. Esses estranhos, com quem seus pais abandonam o narrador e seu irmão, vão e vêm, ora familiares, ora desconhecidos, mas os fatos aí são menos importantes do que o clima de desamparo e desnorteio em que vivem as crianças. Modiano convoca imagens de modo a fazer do romance um laboratório de atmosferas. O pai, ou no caso dessas crianças, os pais, sempre perdidos, são eloquentes em sua ausência.

Quando a Academia Sueca outorgou o Nobel a Modiano, justificou-o à “arte da memória, com a qual ele tem evocado os mais inalcançáveis destinos humanos, e revelado o mundo da vida sob a Ocupação”. Mas faltou a palavra “pai” entre os códigos que elucidam sua exploração — em progresso — da ocupação nazista na França. Em vários de seus romances, o pai do narrador, ou a pessoa desaparecida, consegue escapar de Drancy, o campo de onde eram deportados os prisioneiros, na maioria, judeus, para Auschwitz. A circunstância dessa fuga nunca é bem explicada, há sempre fortes indícios de que ela se deva às ligações nefastas entre o prisioneiro e os nazistas. Sabe-se que isso aconteceu de fato com o pai de Patrick Modiano pouco antes de seu nascimento. Poderia ser, aqui, apenas um dado biográfico, utilizado na oficina dos romances, mas é sempre um dado essencial, traumático, que transformou o autor e muitos de seus narradores em detetives de sua pré-história.

Seu trabalho mais recente dá trégua a esse pai fugidio, e debruça-se com mais força sobre a sombra que esse período projeta. Mapeia os mecanismos da memória, as maneiras com que a reprimimos, a necessidade de esquecer e de lembrar, a dificuldade de esclarecer o passado mediante pouca evidência que se esvai ou se contradiz. Modiano oferece profundas reflexões sobre a sedução e armadilhas da memória. Seu grande tema são as pessoas desaparecidas e não a passagem do tempo. Elas estão mortas, mas a prova de que viveram é que as casas que habitaram ainda existem, as ruas ainda têm os mesmos nomes. É “o memorialismo particular como um meio de atingir um todo”, sintetiza com precisão Flávio Izhaki, no posfácio de Ronda da noite. Do mundo em que viveram os personagens, voltam memórias da infância; Modiano as resgata do vazio uma última vez antes que desapareçam para sempre.

 

Patrick Modiano, autor de “Remissao da Pena”

Memórias judaica e francesa
“On fait toujours le même roman.” Todo autor sabe, ou descobre um dia, que escreveu sempre o mesmo romance. Isso fica evidente nos romances de Modiano, cada um sobreposto aos anteriores, como camadas de grãos de prata sobre papel fotográfico, aos poucos formando uma imagem, depois outra, depois outra. As bordas não ficam mais definidas, é o centro que se intensifica. Essa é a marca da integridade de Modiano, literária e histórica: saber-se incapaz de produzir uma imagem nítida, mas não parar de tentar, ainda que o produto final, se houver um, nunca será um Norman Rockwell. A Ocupação é um trauma do passado, mais do que uma tragédia que continua. Somente revisitando o passado, repetindo os passos que não deu porque não havia nascido, é que poderá descobrir quem ele teria sido naquele mundo. Na Páscoa judaica, quando se comemora a saída dos judeus do Egito, ocorrida há mais de 3 mil anos, lê-se um relato que inclui a frase, “em cada geração, toda pessoa deve se ver como se ele mesmo tivesse saído do Egito”. A visita ao passado que deixou marcas no seu presente, mesmo o passado anterior à vida de cada um, é necessária para que se possa prosseguir. Isso se aplica à Ocupação, como à Inquisição, como ao Êxodo. A obra de Modiano é permeada pela memória judaica e francesa. É verdade que seus romances estão povoados com nomes de localidades de Paris de hoje, mas o passado é irrevogável. A cidade moderna, de neon, é idêntica à sua gêmea sépia.

A necessidade de revisitar o passado que não se viveu é muito frequente na literatura de temática judaica, mas também na literatura europeia em geral. Outro autor europeu perseguido por memórias e história que ocorreram antes de haver nascido é W. G. Sebald. Como ele, Modiano combina a curiosidade do detetive com a melancolia do enlutado. “Muitos amigos que não conheci desapareceram em 1945, ano de meu nascimento”, diz o narrador de Dora Bruder. Para ambos, a Segunda Guerra Mundial, o jugo nazista e o Holocausto pesam sobre o que aconteceu depois, obscurencendo os eventos na vida do narrador e soprando um vento gelado sobre até os detalhes mais prosaicos da vida. Daí as variações sobre o mesmo tema: o homem desaparecido, os pais ausentes, os estragos do tempo, o reaparecimento de alguém sob nomes diferentes. Em cada trama, o narrador continua desnorteado pela história, sua e de sua família, e tenta desenlaçar a narrativa com os fragmentos herdados.

Sua obra tem sido comparada à de Marcel Proust. Em abrangência, relevância, persistência, sem dúvida. Ambos usam o afastamento das crianças pelos pais, e a vulnerabilidade do adolescente em um mundo adulto incompreensível, estruturas temporais complexas; interessam-se pelo antissemitismo francês; demonstram a impenetrabilidade de personagens. Também os narradores de Modiano encontram, por acaso, suas “madeleines”, até na cor verde, por exemplo, em Uma rua de Roma, como observou Bernardo Ajzenberg no posfácio.

Mas há importantes diferenças: sua prosa parece ter mais em comum com o romance noir americano, bem evidente em seus primeiros livros, do que com as frases sinuosas de Proust. Ela flui, lisa feito um trem suspenso no ar. E o mais importante é que na verdade Modiano é o anti-Proust: em seus romances, o passado está perdido para sempre. Modiano não busca o tempo, “re-historiciza os que foram riscados da História”, segundo André de Leones no posfácio de Dora Bruder. O narrador de Primavera de cão é claro: “Eu havia assumido esse trabalho porque me recusava a aceitar que pessoas e coisas pudessem desaparecer sem vestígios”, como que para explicar a missão literária de Modiano. Longe de ser uma tentativa de confissão ou exorcismo, de sua ficção resulta a consciência de que somos seres históricos.

Nas mãos do hábil ficionista, os recursos da historiografia recriam a atmosfera do passado. Entre os documentos “encontrados” pelo narrador Modiano de Dora Bruder, estão registros:

19.6.42. Nachmanowitz. Marthe. 23.3.25. Paris. Francesa. 258 rue Marcadet. J. xx Drancy. 13/8/42.

19.6.42. Pitoun Yvonne. 27.1.25. Algiers. Francesa. 3 rue Marcel-Semblat. J. xx Drancy. 13/8/42.

São citações — reais ou imaginadas, não se sabe — do livro de registros do centro de detenção Les Tourelles, de onde essas moças eram enviadas ao campo de concentração de Drancy, última parada antes de Auschwitz. “J” significa judia, ele explica. Entre a primeira e a última data de cada registro, se lê o nome da prisioneira, que nesse cárcere poderá adivinhar o que viria depois: o espaço em branco em clara metáfora, após o ponto final. Ainda que reais, esses registros poderiam ter sido transcritos por um historiador em forma de tabela, ou em coluna; só o olhar do ficcionista veria neles a forma de dizer mais do que as palavras.

A habilidade de enxergar os que se foram em vestígios invisíveis é outra forte marca de Modiano. Frases como “Tive uma forte impressão de ausência e de vazio cada vez que estive num lugar onde eles moraram”, ou seu uso recorrente da foto de pedestres anônimos há muito falecidos (novamente como Sebald) erguem películas transparentes de filmes do passado, só visíveis a quem procura. O próprio ato de ver um filme altera o filme. Em um de seus momentos mais sublimes, o “Modiano” de Dora Bruder comenta o mal-estar que sentiu ao assistir, no presente, um filme de 1941, Premier rendez-vous:

Ele vinha de certa luminosidade particular do filme, da própria película. Um véu parecia cobrir todas as imagens, acentuava os contrastes, apagando-os, às vezes, numa brancura boreal. A luz estava ao mesmo tempo muito clara e muito escura, sufocando as vozes, ou tornando seu timbre mais forte e inquietante. Compreendi, de repente, que este filme estava impregnado dos olhares dos espectadores do tempo da Ocupação — espectadores de todos os tipos, dos quais um grande número não sobreviveu à guerra. Foram mandados ao desconhecido, após terem visto o filme, em algum sábado à noite que terá sido uma espécie de trégua para eles.

A maestria do autor também está em reconhecer que “precisamos de tempo, para que venha à luz o que estava escondido. É preciso paciência”. Seus narradores aceitam a passagem do tempo como a rota para um destino, e nela persistem, chova ou faça sol — mas nunca faz sol, e nem tudo virá à tona. Também não os livra de pesadelos kafkianos. Enquanto procura informações a respeito de Dora Bruder no Palácio da Justiça, por exemplo, o narrador se perde por vestíbulos, escadas, pátios, onde homens e mulheres ameaçadores andavam apressados em silêncio, vestindo togas de advogado. Não teve coragem de pedir ajuda.

Eu devia aproveitar a oportunidade para atravessar rapidamente a sala, já que ainda não havia encontrado a escada cinco. Mas comecei a sentir uma espécie de pânico, uma vertigem, como ocorre nos pesadelos, ou quando não conseguimos chegar a uma estação, e as horas passam, e vamos perder o trem.

Esse momento difícil remete-o a uma sensação semelhante no passado, quando procurava seu pai em um hospital, após muitos anos sem vê-lo. “Lembro que vaguei durante horas pelo enorme hospital, à sua procura. (…) Acabei duvidando da existência de meu pai. (…) Nunca mais o revi.” É um momento de ruptura, nada será como antes.

Mesmo em vista de sua trágica perda pessoal, o narrador “Modiano” sabe que não há comparação entre sua situação e a de Dora Bruder. O distanciamento entre autor e personagens não é só mantido à custa de barreiras meteorológicas. Apesar das coincidências, muito da identidade do autor são deixadas de fora da identidade dos narradores. Por exemplo, o narrador de Voyage de noces, ainda sem tradução ao português, compartilha várias memórias com Modiano, mas é um produtor de documentários; o narrador de Primavera de cão é um escritor, mas só se tem notícia de seu primeiro romance. A separação entre autor e narrador fica clara na conclusão do narrador, que aquilo que não sabemos sobre Dora Bruder é seu segredo e não nos pertence. Pode parecer pouco consolo, mas revela generosidade: nem o autor nem o enredo possuem os personagens.

Assim como personagens podem desaparecer misteriosamente, fatos ou objetos podem aparecer misteriosamente, por coincidência literária, ou clarividência. Modiano aponta algumas, com obras de Victor Hugo, Jean Genet e Robert Desnos. Para que possam existir tais coincidências, é necessário que o tempo seja mais do que um tema, seja um meio, trilhos em constante construção, onde as histórias possam viajar em todas as direções e os personagens possam descer e subir nas estações sem que o trem pare, às vezes apresentando documentos falsos. Procuram-se os desaparecidos no passado para que se possa suportar o presente.

Lendo vários Modiano, o leitor pensa que sabe onde está. Os lugares são semelhantes e os personagens se parecem. Mas é um erro, porque todos esses romances tratam de perda, e nos obrigam a lembrar que não há duas perdas iguais. Não se lê Modiano à procura de respostas. Se lê cada romance por seu papel na reafirmação de que um único, monstruoso crime, ocorreu aqui.

 

Remissão da pena
Patrick Modiano
Trad.: Maria de Fátima Oliva do Coutto
Record
128 págs.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

Rascunho