“Um trabalhador a quem chamavam de Debakame tinha o costume de espiar as mulheres no banho público e, certa vez, acabou seguindo uma que saía da casa de banho e a violentou. Um acontecimento comum ao extremo, que poderia ocorrer em qualquer país. Fosse nos jornais do Ocidente, não daria mais que um artigo de duas ou três linhas”.
Não, um acontecimento desses jamais pode ser visto como algo corriqueiro, comum, apesar de no Ocidente esse tipo de situação despertar cada vez menos atenção e compaixão das pessoas. O que surpreende é essa constatação estar em Vita sexualis, do japonês Ogai Mori, obra lançada em 1909, quando o Japão começava a se abrir para o lado de cá do mundo.
É sabido que os valores sexuais dos ocidentais e dos orientais, a grosso modo, são bastante distintos. Quando olhamos para o Japão, então, o que nos fazem ver (só conheço a terra do Jiraya por meio dos outros) é um país onde as pessoas têm peculiaridades espantosas no que diz respeito ao sexo. Hoje, abundam reportagens mostrando que os japoneses não transam mais, preferem trabalhar, e que até mesmo os relacionamentos estão se extinguindo. Ainda mais assustador, há japas se apaixonando por bonecas ou mulheres virtuais. As relações humanas parecem ser suprimidas ao máximo.
Então, deslocando-se mais de cem anos no tempo, não causa surpresa saber que Vita sexualis, ao ser lançado, tenha sido censurado pelas autoridades, que o acusavam de tratar do desejo sexual e, assim, atentar à moral. O autor, inclusive, recebera uma repreensão do então ministro da guerra japonês. Provavelmente achavam que frases como “colocando-se as lentes da lascívia, veremos que a força-motriz por trás de toda a ação humana reside tão somente o desejo sexual” poderiam subverter uma nação.
Mas não nos enganemos. A obra é de um escritor japonês que viveu entre o final do século 19 e o começo do 20. Sua ousadia está em tratar de temas polêmicos à época, como o homossexualismo, contudo, não espere nada próximo das grandes putarias contemporâneas de nomes como Pedro Juan Gutiérrez, Reinaldo Moraes, Hilda Hilst ou até mesmo Vargas Llosa em seus livros mais sacanas.
Duplo romance de formação
“Depois de escrever com clareza, o preto sobre o branco, decerto eu próprio irei enfim entender-me. E assim quiçá venha a descobrir se minha vida lasciva é normal ou anomalus”. A obra parte da necessidade de Shizuka Kanai investigar a sua trajetória sexual. Kanai é um alter ego do próprio Mori, médico que serviu o exército e também se dedicou ao estudo da literatura, com grande interesse por obras ocidentais. As referências literárias, aliás, estão muito presentes na obra, remetendo-nos aos clássicos romances de formação. No caso, seria um romance de formação duplo, afinal, o que está em primeiro plano é a formação sexual do protagonista.
A primeira memória vem dos seis anos, quando encontra uma tia e uma moça se comportando estranhamente ao verem um livro bonito, colorido, desenhado com gravuras do corpo humano. Quando se aproxima para também vê-lo, elas viram o livro para baixo e lhe apresentam apenas o desenho de um grande rosto de mulher que estampa a capa. Em seguida, a tia resolve mostrar-lhe uma das cenas internas e pergunta se o garoto sabia do que se tratava a figura. “Será um pé?”, diz ele, para ser zombado em seguida e depois constatar que “não possuía então o conhecimento necessário para julgar o que eram os desenhos que as duas estavam observando”.
Daí em diante, Kanai nos apresenta suas descobertas sexuais, passando pela tensão sexual que há enquanto descobre o assunto com colegas da escola, a presença do homossexualismo no mesmo ambiente, os sujeitos influenciados negativamente pelas grandes cidades, chegando até a questões mais profundas, como a moral dos casamentos de interesse, o machismo intrínseco à sociedade e como o sexo pode ditar os rumos das vidas das pessoas. Enquanto cada descoberta lhe trazia grandes dilemas, apoiava-se no que podia perceber na literatura: “De algum modo sentia as relações entre homens e mulheres flutuarem em meu coração como um sonho bonito”, relata o protagonista.
Vita pré-sexualis
Apesar de premissas como “há certas coisas que todas as pessoas fazem, mas não são comentadas por ninguém”, essas coisas são no máximo insinuadas com muita parcimônia e só envolvem o protagonista já no final da narrativa. Se formos nos apegar às questões carnais, factuais, não seria exagero rebatizar Vita sexualis de “Vita pré-sexualis”.
De cunho assumidamente autobiográfico (algo muito bem pontuado pelo cuidado que a editora teve ao fazer as notas de rodapé, diga-se, que também ajudam a nos situar no Japão da época), Mori, ao construir um personagem para lhe representar, cria o que, hoje, seria chamado de nerd, que acredita que caminhar de mãos dadas com uma mulher pode ser algo espetacular. Tudo bem que o tempo e a cultura eram outros, mas o trecho a seguir nos dá dimensão exata do quanto o protagonista, digamos, demorou para desabrochar:
Fiz dezenove anos.
Em julho concluí a graduação. Houve quem visse minha idade nos documentos da universidade e comentasse como era raro alguém que acabara de fazer vinte anos já ser bacharel. Na verdade, eu ainda nem havia completado vinte. Acabei graduando-me sem conhecer esse algo chamado mulher.
Essa lentidão em descobrir o sexo vem acompanhada de muita bondade e elegância, como podemos constatar ao vê-lo descrevendo as prostitutas. “Quando se diz a uma criança que se comporte, é comum ele fazer uma careta. Pois essas mulheres tinham toda a expressão estranha tal qual uma criança repreendida. As sobrancelhas eram pintadas mais altas possível, um exagero, erguidas até a linha do cabelo. Os olhos, os esbugalhavam também o máximo possível. Mesmo quando falavam ou riam, esforçavam-se para não mover o rosto do nariz para cima. Por que teriam todas o mesmo rosto, como se houvessem combinado entre si? — foi o que pensei. Embora eu não soubesse, tratavam-se de rostos de mercadorias. Aquela era o semblante da prostituition”. Tudo isso acaba compondo um personagem que paulatinamente perde a sua inocência perante ao mundo, mas num ritmo muito mais lento do que as pessoas que estão ao seu redor, e sem, contudo, perder a sua bondade.
Já ao final, Kanai também começa a se descobrir como escritor. “A mim parece que, surpreendentemente, um jornal somente atrai pessoas que não entendem como ele funciona”, relata após ter suas primeiras crônicas publicadas, numa constatação que talvez faça ainda mais sentido hoje em dia. “Por sorte, meu texto pode passar sem ter seu direito de existência questionado. Afinal, naqueles tempos ainda não havia sido inventado a crítica literária, essa coisa que, ela sim, não tem o menor direito de existir, por não contribuir de modo nenhum à humanidade, nem intelectual nem emocionalmente”, continua em outra oportunidade. Sorte dele que este jornal jamais cairá em suas mãos!