Incômoda memória

Combateremos a sombra escava o medo da repressão e do silêncio forçado que ronda as lembranças do regime salazarista
Lídia Jorge, autora de “Combateremos a sombra”
02/03/2015

Combateremos a sombra, romance de Lídia Jorge, é a história de Osvaldo Campos, psicanalista, casado com Maria Cristina, que leva uma vida totalmente absorvida pelo trabalho. O romance recebeu o Prêmio Charles Bisset, da Associação Francesa de Psiquiatria em 2008, pela qualidade no tratamento das questões psicanalíticas e de introspecção que são apresentadas por meio do protagonista e das suas relações com os seus pacientes.

Perdido entre o cotidiano que lhe invoca a comparecer aos compromissos conjugais e sociais, que não consegue cumprir, e a vida no consultório com pacientes que lhe tomam o tempo todo com seus problemas e a falta de perspectivas de resolvê-los.

Combateremos a sombra é uma narrativa escrita em terceira pessoa e dividida em sete capítulos: Os dois smokings, A hora da bondade, A visita da noite, A cena branca, Tudo o que voa, Combateremos a sombra e Processo de primavera.

Tudo começa na noite da virada de ano do milênio em que Osvaldo Campos tem que terminar um artigo intitulado Quanto pesa uma alma? Responde um prático — encomenda para uma revista especializada em psicanálise — a tempo de chegar à festa de ano-novo em que sua mulher receberia um prêmio. A briga e a cobrança da sempre “não presença” de Osvaldo fazem com que ele se condicione a viver aquele dia enxutamente para que não desapontasse mais uma vez Maria Cristina.

O dia no consultório o faz viver o contrário de seus planos: pacientes inesperados e desesperados com suas histórias e traumas começam a aparecer ocupando seus horários e tomando de assalto, mais uma vez, seu cotidiano.

Diferentes histórias vividas por personagens de destinos inusitados vão se aglutinando: Lázaro Catembe, vítima da guerra em Luanda, que ainda traz a memória da guerra e tem aversão a pessoas negras como ele; Elísio Passos, jornalista veterano, que se sente perseguido pelas ideias salazaristas a ponto de pensar ter ingerido ovos envenenados produzidos à época de Salazar; Gisela Baptista, a atriz e sua imensa dificuldade em falar; General Ortiz e suas previsões de guerra; e Maria London, sempre a última paciente a ser atendida, “que mudava de hora, mas não de ordem”.

A morte de Elísio Passos, que encerra em si uma misteriosa ligação entre suas teorias conspiratórias, e as loucuras de possíveis episódios e tramas no passado português e da política que o jornalista passara muitos anos investigando acabam fazendo com que Osvaldo Campos comece a questionar-se sobre o que há em torno de uma vida aparentemente normal.

As dificuldades em manter o consultório, o remanejamento do dinheiro ganho como professor para pagar Ana Justa, a secretária, e as contas; a descoberta do caso de Maria Cristina com Navarra, psicanalista reconhecido pela mídia e seu ex-sócio, o divórcio e a divisão dos bens, o apreço por Maria London e todas as coisas que rondam a sua mente, vão adensando a narrativa e nos colocando como espectadores ansiosos pelo desfecho da existência de Osvaldo.

Mistério e crime
Maria London não é apenas a paciente preferida, mas também a sedutora jovem que o envolve num clima de mistério e crime. Seus sonhos, as relações externas com um mundo desconhecido por Osvaldo, o levam à desconfiança e ao medo, mas também às sensações de prazer e desejo por Maria. Nos sonhos de Maria, um submundo de exploração humana, drogas passam de um contexto de imaginação a uma realidade concreta e misteriosa. Filha de um magnata, envolvido diretamente no tráfico de drogas, Maria, elemento passivo da história do pai, é o início da emboscada em que Osvaldo irá fatalmente se envolver.

A trágica virada do milênio traz consigo o fim do casamento de Osvaldo e Maria Cristina e uma nova possibilidade de felicidade: Rossiana, a mulher angolana refugiada no apartamento de um sujeito considerado deprimente por Osvaldo. A proximidade com Rossiana lhe traz a verdade: era uma fotógrafa que registrou trabalhadores ilegais, mulas de tráfico e outras atividades do submundo. Salva por um colega encarregado de eliminá-la, Rossiana era mantida em segredo no apartamento em que Osvaldo a conhece.

Após conseguir sua fuga em segurança para a Itália, o psicanalista inicia a elaboração de um dossiê em que são divulgadas as informações obtidas com ela e com Maria London sobre o tráfico que silenciosamente acontecia em Portugal. Os documentos iriam para os órgãos governamentais e para a imprensa. Descortinando o submundo, ele também prepara sua própria morte. Eliminado pela proeza de expor o esquema mantido pelo pai de Maria London, Osvaldo acaba sendo anunciado como um suicida.

Lídia Jorge constrói com grande qualidade uma história que não foge ao campo ideológico português: a memória salazarista, os anos de silêncio e opressão, figuras que combateram a ditadura e que permaneceram sob a égide do medo da repressão e do silêncio forçado; a África e as relações de dominação e desejo de liberdade vividas por refugiados e indivíduos que sobreviveram com traumas e medos às guerras por independência. A escravidão, o tráfico de drogas, a exploração humana e a constante luta pela igualdade e justiça movem determinadas personagens do romance.

Com a morte de Osvaldo, uma nova personagem entra em cena. A narradora, revelada apenas no final, Marisa Octaviana, jornalista, é portadora de todas as informações obtidas por Osvaldo. Ela dará fim à investigação iniciada pelo psicanalista, encadeando acontecimentos e dando sentido ao que ele fizera durante os últimos meses.

A significativa virada do milênio, a necessidade de Osvaldo Campos de entender o peso de uma alma, os segredos e as histórias que a constitui. A escolha de um protagonista psicanalista é justamente o que torna o romance de Lídia Jorge tão complexo e tão profundo. O silêncio é o espaço em que se ocultam as palavras e segredos não ditos, mas rastreados nas falas e sonhos de seus pacientes. Nas leituras de cada paciente estão os dramas e as necessidades de muitos indivíduos portugueses. A autora traça, como não poderia deixar de fazê-lo, o mapeamento de diversos comportamentos identificados no cotidiano português. A violência e o medo ocultos em uma realidade. Desvelados e identificados, esses dramas tomam os capítulos de Combateremos a sombra.

Combateremos a sombra
Lídia Jorge
Leya
462 págs.
Lídia Jorge
Nasceu em Algarve, Portugal, em 1946. É autora de diversos romances, entre eles: O dia dos prodígios, O vento assoviando nas gruas, A costa dos murmúrios, A manta do soldado e A noite das mulheres cantoras. Recebeu prêmios como o de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores e o Literário Correntes d’Escritas.
Gabriela Silva

Graduada em Letras, licenciatura plena em língua portuguesa, literaturas de língua portuguesa e Especialista em “Leitura: Teoria e Prática” pela Fapa; Especialista em Literatura Brasileira e Mestre em Teoria da Literatura pela PUC-RS. Doutora em Teoria da Literatura.

Rascunho