Em seu famoso texto sobre O primo Basílio, de Eça de Queirós, Machado de Assis refere-se a esse romance naturalista como uma “imitação” de La Faute de l’abbé Mouret, de Émile Zola. É sua observação mais branda. Publicada em duas partes, nos dias 16 e 30 de abril de 1878, a crítica afirma, sem dissimulação:
Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis. Pela primeira vez, aparecia um livro em que o escuso e o — digamos o próprio termo, pois tratamos de repelir a doutrina, não o talento, e menos o homem —, em que o escuso e o torpe eram tratados com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de inventário.
E conclui, ainda referindo-se, com ironia, ao “inventário”:
[…] A nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha.
O acerto das repreensões machadianas — para ele, “o perigo do momento realista é haver quem suponha que o traço grosso é o traço exato” — se confirmaria poucos anos mais tarde, com Aluísio Azevedo, obcecado por tudo que representasse “esfregão de cozinha”, sempre pronto a tratar seus personagens como exemplos de uma inescapável depravação, física e moral.
À parte o que Machado anuncia de sua própria estética nessas reflexões — lembremos que Memórias póstumas de Brás Cubas sairia no formato de livro em 1881 —, o acerto da crítica mostra-se incontestável. O naturalismo, entre nós, se restringiu a apresentar o homem como escravo dos caracteres hereditários e do meio, da natureza, utilizando um monismo vulgar, que via apenas os aspectos patológicos do indivíduo e da realidade; como afirmo, aliás, em Muita retórica — Pouca literatura, no capítulo dedicado a O cortiço.
Essa escola literária, que naufraga nos estereótipos e na ausência de livre-arbítrio dos personagens, fez sucesso entre nossos escritores: em 1895, meia década depois de O cortiço, deu vida à subliteratura de Adolfo Caminha e seu Bom crioulo; em 1902, determinismo e hereditariedade se refestelam em Canaã, de Graça Aranha; 25 anos após Aluísio Azevedo ter abandonado a literatura pela carreira diplomática, ela ressurge, em 1920, no romance Fruta do mato, de Afrânio Peixoto. Antes, no ano de 1913, contribuiu para transformar Aves de arribação, de Antônio Sales, num exemplo perfeito da pior literatice. E em 1928, passados seis anos da supostamente revolucionária Semana de 22 — que, segundo alguns desvairados papagueadores, salvou a literatura nacional — o naturalismo apresentou-se, vivíssimo, intacto, em A Bagaceira, de José Américo de Almeida.
Na verdade, a vida literária se submeteu de bom grado, em nosso país, à visão determinista, ao cientificismo. E alguns desses escritores, talvez exatamente por seu pessimismo — sem esquecer Euclides da Cunha e Os sertões —, continuam a ser exaltados pela crítica. Todos eles repetem, como se anunciassem alguma verdade milenar, a fala de Milkau em Canaã, que vê no seu guia, um pobre menino brasileiro,
o rebento fanado de uma raça que ia se extinguindo na dor surda e inconsciente das espécies que nunca chegam a uma florescência superior, a uma plena expansão da individualidade.
Não é à toa que, em 1926 e 1936, o fascista Filippo Marinetti, ao visitar o Brasil, foi aclamado como um gênio. A mística exaltada do fascismo, que pretende criar uma nova nação, uma comunidade étnica perfeita, seja lá o que isso for, amolda-se perfeitamente ao derrotismo, à autocomiseração de parcela da nossa elite literária — que se encarregou de acrescentar à receita a morbidez naturalista, a tendência, como denunciou Machado, de tratar “o escuso e o torpe com um carinho minucioso”.
Leis da fisiologia
As narrativas que compõem Puçanga, de Peregrino Júnior, publicado em 1929, confirmam o exposto acima. Aliás, o próprio verbete biográfico do escritor, publicado no sítio da Academia Brasileira de Letras, salienta, entre os temas centrais de sua obra, a “fatalidade geográfica”.
Termo repisado em Os sertões, a ideia embutida nos vocábulos “fatalidade” e “fatalismo” é a melhor desculpa para um povo treinado no apadrinhamento de coronéis e nas benesses governamentais. Se tudo está prescrito com antecedência pela natureza, qual o sentido de lutar, qual o sentido de erguer a cabeça, com suas próprias forças, acima da pobreza? Se nada pode modificar o rumo dos acontecimentos, é preferível que o governo, na sua imaculada bondade, conceda-me o Bolsa Família e deixe-me aqui, sempre disposto a me tornar o personagem ideal de uma literatura pequena.
Assim ocorre com os personagens de Peregrino Júnior, que recusou as lições de Inglês de Souza em Contos amazônicos, obra publicada no ano de 1893, ainda hoje erroneamente classificada como naturalista pelos nossos acadêmicos, mas em tudo superior às historietas de Puçanga.
A narrativa que abre o volume não deixa espaço a dúvidas. O “elixir indígena”, poção mágica, “maior descoberta do século”, que oferece a “cura radical” até mesmo da lepra, reúne à porta do Hotel América, sob o comando do coronel José Caruana e seu ganancioso sócio, o médico Vicente Dória,
a procissão macabra das misérias humanas. Leprosos, tísicos, opilados, papudos, herniados, idiotas — aqueles sinistros rebotalhos da espécie, que a Natureza, na sua inexorável sabedoria, em proporções úteis tinha condenado ao aniquilamento — subiam e desciam incessantemente as escadas do Hotel, em busca de cura ou alívio para as suas mazelas irremediáveis. Era doloroso e era repulsivo. Uma parada ostensiva de decadências físicas.
Não bastasse a redundância do período, que abre e termina com a mesma ideia — procissão/parada; misérias humanas/decadência físicas —, reencontramos essa natureza tão sábia e sádica, capaz de distribuir doenças em “proporções úteis”, lembrando que, também para benefício da estética naturalista, as mazelas são “irremediáveis”.
Na história seguinte, Areia gulosa, o autor se rende ao esquematismo e cria um par de personagens opostos: Josino, um tapuio do Baixo Amazonas, preguiçoso e supersticioso, e Antônio, cearense do Rio Grande do Norte, corajoso, trabalhador, quase um semideus.
Antônio recebe os encômios retóricos e inconvincentes do narrador:
Bicho forte e valente, […] possui músculos encordoados e tendões tesos. Tem o olhar vivo e franco; seus gestos elásticos são ágeis; a palavra dele é fácil, a voz segura, a expressão pitoresca. A todo instante confessa, no que diz e no que faz, que guardou no sangue o calor do sol implacável e na alma a lição útil dos trabalhos e das provações duras do sertão estorricado donde a seca o expulsou sem piedade. Exuberante, falastrão, bravateiro, gosta de contar histórias, e sabe ilustrar as coisas engraçadas que diz com o desenho decorativo dos gestos amplos. Cabra disposto e resoluto, é capaz de matar um cristão por um dez réis de mel coado.
Quanto ao tapuio, a este o narrador reserva os males, igualmente inverossímeis, da hereditariedade:
Cherimbado do gerente, conseguiu Josino a vida que sonhava: vivia na sua choça, de barriga no chão, pescando e dormindo.
Não fazia nada.
Malandro e solerte, de quando em vez tecia uma esteira ou fazia uma cuia para o capataz Mergulhão.
Deste tamanho, mirrado, amarelo, carnes bambas, pele suja, olhos apagados, cabelos estirados, lábios grossos, traz na cara mongólica os estigmas visíveis da opilação, do etilismo, da malária.
A alma espelha as mazelas espoliantes do corpo.
Temperamento madraço, incolor e amorfo, duma passividade congênita, é resignado e tranquilo, aceitando tudo, o bem e o mal, sem alegria, mas também sem tristeza, incapaz integralmente de reação ou cólera.
Insatisfeito com o quadro negativo, o narrador ainda completa: “Arreganhava os dentes num sorriso que era um vestígio simiesco da careta antropoide”.
Resta, a Antônio e Josino, seguirem obedecendo o que a genética inscreveu em suas células, nada mais. Tal determinação esvazia inclusive o porquê da narrativa, afinal, se os personagens são desprovidos de vontade própria, não há sentido em apenas reproduzir seus automatismos.
Raimundo Turuna, protagonista de Ladrão de mulheres, sofre do mesmo mal:
Nascido e criado no nomadismo profissional da vida de canoeiro — correndo mundo sem se levantar do bailéu do barco — acostumado desde curumim ao isolamento e à imobilidade das longas viagens, deixou-se inconscientemente penetrar de um instintivo sentimento de fatalismo, que o torna indiferente aos riscos da vida, e que seria fácil de confundir com o prazer voluptuoso da preguiça, se não fosse a ágil presteza com que ele se transforma, de repente, quando acaso sobrevém o perigo, seja a cólera do homem bruto, seja a fúria do mar bravo, revelando-lhe no corpo mole de caboclo indolente as energias latentes que dormiam silenciosas no seu sangue…
Agitado ou em calma, o personagem obedece não à sua vontade, à decisão tomada em seu íntimo, mas apenas a ímpetos irracionais, ditados pelo instinto, pelas leis da fisiologia.
Páginas à frente, na mesma narrativa, o autor não deixa dúvidas em relação ao seu determinismo:
Ali é a geografia que explica o homem. A tristeza e o fatalismo, a indiferença e a confiança — são qualidades que só se compreendem, contemplando a topografia da região. A paisagem obedece à monotonia de planos geométricos invariáveis: para fora, mar e céu, até onde a vista alcança; para dentro, as margens daquelas intermináveis águas sujas são extensas tarjas atolentas de tijuco preto.
Da construção da frase à escolha lexical, passando pelo eco das teorias cientificistas e pelas generalizações, o parágrafo transpira, do começo ao fim, Euclides da Cunha.
Redundâncias
Encontramos, num dos exemplos acima, o uso da redundância. É uma das constantes do autor. Veja-se este trecho:
Enfeitou a cara redonda com um sorriso circular. Uma ideia inesperada e excitante, fazendo-lhe piruetas contentes nas rugas da testa, deu-lhe piparotes na imaginação.
Não consigo imaginar um sorriso que, ao menos, não prenuncie um círculo — e desconheço piruetas que sejam de tristeza. Logo a seguir, na mesma página, de maneira a não permitir possíveis dúvidas, o narrador enfatiza: o personagem carrega “uma alegria ridícula e sorridente escancarada em todas as rugas da cara”.
Esse infeliz personagem, o dr. Dória, usa “uma dialética untuosa e sonora” e desdobra, diante do possível sócio, “uma longa série persuasiva de argumentos de peso”. Segundo a estranha lógica do autor, argumentos de peso não são persuasivos, mesmo que em série…
Mais à frente, um leproso “conduzia com gravidade sinistra pelas ruas da cidade o espetáculo macabro de sua decomposição itinerante”. Ora, se ele “conduz pela cidade”, com certeza é “itinerante” — e se é “sinistro” também é “macabro”.
No início das peripécias em torno do “elixir indígena”, somos avisados sobre o “castigo emoliente” do “sol do meio-dia”. Passam-se cinco páginas e o narrador, desconfiado da nossa fraca memória, ressalta, mais uma vez, a “hora implacável de calor emoliente”.
Encontramos outro exemplo de redundância massacrante em O putirum dos espectros. Diz o narrador: “O petardo da notícia estourou no seringal com estrupício”. Seria surpreendente se um petardo estourasse em silêncio, de maneira que só temos a agradecer ao escritor por insistir na repetição da ideia.
Certa família é tratada como uma “tribo espectral de múmias”. Não bastasse o exagero da figura, ela retorna, poucos parágrafos adiante, a fechar a narrativa: “[…] a miséria daquelas múmias ambulantes”.
Às vezes, o autor consegue elaborar certa imagem curiosa: “A sombra coagulada das mangueiras, esmagando os paralelepípedos da avenida […]” (em Feitiço). Mas, páginas à frente, fraco de imaginação e memória, o autor decepciona e repete a figura: “As sombras do crepúsculo esmagavam a floresta” (em O espritado).
De resto, temos lugares-comuns:
…Aquilo tudo despertava, na intimidade profunda do seu ser, sensualidades adormecidas e ignoradas, que agora flutuavam, exaltadas, numa tempestade de desejos, nos seus olhos iluminados…
Ou a frase de matriz euclidiana:
[…] Os jejuns prolongados galvanizaram-lhes nas fisionomias mumificadas a resignação imóvel dos faquires.
Merece leitura apenas a narrativa que fecha o volume: A fogueira de Guajará — desprezando-se, é claro, os trechos pleonásticos, a adjetivação exagerada e as páginas em que o autor copia uma série de cantigas populares.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Rachel de Queiroz e O quinze.