Livros sobre a morte não são novidade. Em uma rápida olhada na estante, identifico A morte do pai, de Karl Ove Knausgard, A redoma de vidro, de Sylvia Plath, As virgens suicidas, de Jeffrey Eugenides, e Intermitências da morte, de José Saramago. Fato é que o tema não fascina somente escritores — ele intriga também os leitores.
Os confrontos com a morte são o tema de O oitavo selo, de Heloisa Seixas. Para desenvolver a sua história, a autora parte de duas referências principais — Sherazade, narradora de As mil e uma noites, que conta histórias diariamente para prolongar seu tempo de vida, e o filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman, em que um homem condenado joga xadrez com a morte para ganhar tempo.
Em paralelo às duas referências, Heloisa nos apresenta seu marido, Ruy Castro, também escritor e jornalista. Definido por ela como um quase romance, a proposta é narrar os confrontos de Ruy com a morte, em um formato que mistura os limites de ficção e realidade.
(Pode-se pensar sim em autoficção — a diferença é que nesse livro, a matéria-prima usada é a vida de alguém próximo, e não a vida da própria autora, que só se torna um personagem do livro na metade da narrativa).
Em referência ao filme de Bergman, cada um dos confrontos com a morte é chamado de selo, funcionando como uma marca deixada no corpo e na mente do personagem. Ao todo, sete são narrados na obra — e fica explícito que o oitavo está por vir.
Intitulados Sangue, Nariz, Fígado, Língua, Coração, Sexo e Cérebro, os capítulos contam sobre a morte da irmã de Ruy, seu contato com drogas e álcool e as batalhas que travou contra o câncer.
Esses encontros com a morte ficam cada vez mais fortes, causando mais dor ao personagem e a outros envolvidos. No início, a morte acontece com outro — e experimentada pelo ponto de vista dos vivos. Para o fim do livro, essas experiências são doenças com danos físicos reais, como se a morte estivesse cada vez mais próxima. Aos poucos, a história fica mais sombria.
Narrativa
O livro é narrado em terceira pessoa. Nos três primeiros selos, sabemos das experiências de Ruy com alguns personagens de fundo, sendo que poucos deles são nomeados ou explorados de maneira mais intensa. O narrador permanece sutil e estável perante as dificuldades do personagem.
Porém, a partir do quarto selo, Heloisa está presente na vida de Ruy e se torna uma personagem importante na narrativa. A autora apresenta mais sentimentos próprios, com suas reações diante do que acontece com o marido. Ao expor medos próprios, mesmo que em terceira pessoa, ela deixa a história mais densa. Além disso, essa nova camada de história entrega personagens mais interessantes.
Uma das características que a narrativa atribui a Ruy é seu bom humor. Isso se reflete principalmente em trechos em primeira pessoa inseridos ao longo da narrativa. São parágrafos escritos tanto por Ruy como por Heloisa e com uma identificação gráfica diferente na mancha do livro.
Essas “intromissões” são opiniões ou comentários sobre os fatos narrados, com um tom mais coloquial e espontâneo do que o tom usado pelo narrador em terceira pessoa. De acordo com os assuntos tratados, cabe a esses comentários a sinceridade. Eles trazem humor e também um tanto de melancolia.
Como exemplo, Ruy: “E, na ida a Madureira, quase fiquei decepcionado porque a pessoa que nos vendeu o pó era uma senhora com varizes, como as vizinhas gordas e patuscas de Nelson Rodrigues”.
Palavra
Tanto Heloisa como Ruy são jornalistas e escritores — pessoas que trabalham com a palavra. Mais que isso, ouso dizer que é a partir da palavra que dão sentido ao mundo.
A ligação é tão forte que, em entrevista para O Globo, Heloisa afirma comparar Ruy Castro com Sherazade: “Durante muitas situações extremamente complicadas pelas quais passamos, eu chegava à conclusão de que ele só não morria porque tinha uma história para contar, exatamente como a Sherazade”.
Um dos momentos em que isso fica mais evidente (e que se torna uma das cenas mais fortes do livro) é o ano em que Ruy luta contra o câncer de língua e escreve a biografia de Carmen Miranda — boa parte das 632 páginas do livro foram escritas em meio de 34 sessões de radioterapia e sete de quimioterapia, entre outros procedimentos (os dados foram contabilizados pela própria Heloisa).
A narrativa de O oitavo selo cria a sensação de que escrever durante o tratamento e levar as folhas prontas para revisão no hospital parece ter dado forças para Ruy.
Recriação da vida
Um dos aspectos interessantes do livro é a maneira como a autora recria a vida — tanto a parte em que ela estava presente como a que estava ausente — de Ruy Castro.
Nas três primeiras partes da narrativa, enquanto eles ainda não se conheciam, ela recria a vida e personalidade dele, tentando imaginar como teria enfrentado as situações e enumerando namoradas, fraquezas, acontecimentos e crescimentos pessoais.
Depois disso, nas três partes seguintes, Heloisa é uma figura presente e importante na vida de Ruy. Ela então recria o que viveram juntos a partir de seus próprios olhos.
Uma das características principais adotadas pela autora na estrutura do livro é explicitada durante a narrativa. Em determinado momento, ela analisa a maneira com que vive perante os problemas de saúde do marido: em trechos, marcados ou por experiências com a morte ou por datas mais pragmáticas, como prazos médicos e tempo de espera até um próximo exame.
Seis meses. Mais uma vez a vida parecia acontecer para ela assim, aos pedaços, a metade de um ano sempre como uma marca a ser vencida, ou retardada, ou esquecida — ou lembrada para sempre.
Essa mesma estrutura, identificada na vida real, acaba sendo usada como estrutura da narrativa. Cada um dos selos narra um desses trechos de vida, com todos os seus obstáculos vividos — os sete selos. É subentendido: um oitavo selo ainda está por vir.
Ao fim, a sensação mais forte é que a própria Heloisa usa o artifício da palavra para continuar. A escrita é uma maneira de digerir os acontecimentos e emoções e talvez até de se preparar para o oitavo selo.