Poética da emulação: um quadro teórico [1]

A forma mais econômica de apresentar o projeto que estrutura o quadro teórico que propus em livro recente consiste em relacionar uma série de exposições
Ilustração: Tiago Silva
05/02/2015

Rivalidade como forma
A forma mais econômica de apresentar o projeto que estrutura o quadro teórico que propus em livro recente consiste em relacionar uma série de exposições, cujo eixo evoca a teoria mimética, tal como desenvolvida pelo pensador francês René Girard.

Em 2002, organizou-se uma exibição inovadora: Matisse Picasso. A relação sinuosa dos dois artistas parece feita sob medida para iluminar as afinidades eletivas entre teoria mimética e o conjunto de procedimentos estéticos e intelectuais que proponho denominar poética da emulação. Nas palavras de John Golding: “Esta exibição trata de um dos mais fascinantes e instrutivos episódios da história da arte”.

De fato.

O episódio trouxe à superfície o circuito que, de forma aberta ou subterrânea, moldou a concepção de arte na cultura ocidental. Refiro-me ao par imitatio e aemulatio, dominante especialmente a partir da cultura latina, dado o desafio de assimilar as técnicas e as obras da cultura grega e do legado helenístico. Nesse registro estético, estamos às voltas com a triangularidade do desejo mimético, tal como identificada por René Girard em Mensonge romantique et vérité romanesque (1961).

Recordo, telegraficamente, a teorização do pensador francês. O desejo humano, propõe Girard, é fruto da presença de um mediador. Não desejamos direta, mas indiretamente, e o alvo de nosso desejo é determinado menos por nós mesmos do que pelas redes tramadas pelas mediações que nos envolvem. O desejo, assim, sempre implica mediações entre o sujeito, o objeto desejado e, sobretudo, o mediador, isto é, o modelo adotado para a definição do desejo, que, desse modo, depende de uma relação de triangularidade. Nesse horizonte, o estudo das mediações é decisivo, pois o sujeito tenderá a disputar com o modelo a posse do objeto, cujo interesse, reitere-se, foi despertado pelo próprio modelo.

Daí, a dimensão conflitiva do circuito mimético, assinalando a força da concepção girardiana, ao localizar o caráter estrutural da violência na mímesis nossa de cada dia.

Girard identificou duas formas de mediação.

De um lado, a mediação externa, na qual sujeito e modelo ocupam esferas distintas e, por isso, a possibilidade de conflito é inexistente. De outro, a mediação interna, na qual, pelo contrário, sujeito e modelo encontram-se no mesmo plano. Portanto, esta última forma de mediação é local de conflitos potenciais, dada a proximidade entre sujeito e modelo. E isso também no plano estético. Senão vejamos: o novo artista (sujeito), a fim de produzir sua obra (objeto), necessita calibrar seu entendimento seja da tradição como um todo, seja de um artista determinado, em geral, um contemporâneo consagrado, isto é, um modelo. E, assim como o desejo mimético engendra rivalidades e uma eventual escalada da violência (física), a rivalidade artística e intelectual também favorece um alto nível de violência (simbólica).

Não surpreende descobrir que, no tocante ao contato entre Picasso e Matisse, “os dois homens tornaram-se os mais importantes pontos fixos em suas carreiras artísticas”. Em março de 1906, os dois pintores se encontraram pela primeira vez. Aos 37 anos, Matisse já era um “chef d’école”. Picasso, doze anos mais jovem, ainda não contava com a aura do mestre. Naturalmente, nesse primeiro momento, o espanhol assimilou avidamente as lições do francês. Porém, muito rapidamente, na verdade, no ano seguinte, Picasso reinventou-se com a produção de Les demoiselles d’Avignon. O impacto da tela é sobejamente conhecido. Mas vale notar que Matisse passou a observar com atenção redobrada o trabalho do outro pintor. A tensão produtiva se instalou, como a lembrança de Picasso esclarece: “É necessário imaginar, lado a lado, tudo que Matisse e eu fizemos nessa época. Ninguém estudou as pinturas de Matisse mais cuidadosamente do que eu; e ninguém estudou as minhas mais cuidadosamente do que ele”.

(A pulsão mimética, como se percebe, contagia a própria frase de Picasso.)

Ora, não será excessivo supor que um dos capítulos decisivos da história da arte moderna foi escrito com pinceladas decididamente miméticas.

Uma segunda exposição levou essa noção ao conjunto da obra do espanhol. Penso em Picasso et les maîtres, organizada em 2008. Mais uma vez, o pintor demonstrou plena consciência do processo: “Somos nós, os pintores, os verdadeiros herdeiros, aqueles que continuam a pintar. Somos os herdeiros de Rembrandt, Velázquez, Cézanne, Matisse. Um pintor sempre tem uma mãe e um pai; ele não surge do nada…”

No fundo, não é casual que estejamos lidando com a pintura. Em pleno século 19, mesmo após a eclosão do Romantismo, e a consequente obliteração tanto dos modelos retóricos quanto da centralidade da técnica da imitatio e da aemulatio na prática artística, o aprendizado nas escolas de pintura preservou o hábito de copiar obras-primas da tradição, propiciando a apropriação de modelos, passo indispensável para a invenção. Aliás, o tipo de educação formal que Picasso conheceu muito bem em sua cidade natal, Málaga.

Marie-Laure Bernadac sintetizou o procedimento do pintor:

Sua relação com os pintores do passado evoca mais o canibalismo, a iconofagia, do que o pastiche ou a paráfrase. Não se trata somente de uma relação entre telas, mas de um diálogo entre pintores, de uma identificação verdadeira, quase afetiva, com os artistas que ele admira e que formam seu panteão artístico.

No âmbito dessa exposição, organizou-se uma mostra temática, dedicada à obsessão do espanhol com a tela emblemática de Manet, Le Déjeneur sur l’herbe, apresentada em 1863 no Salon des Refusés. Em 1932, por ocasião de uma retrospectiva, Picasso sentiu-se particularmente desafiado pela tela. Um pouco mais de duas décadas depois, em 1954, principiou a apropriar-se da obra por meio de esboços e desenhos que dialogavam com a distribuição dos volumes na composição do francês. O procedimento, agora, conheceu uma síntese de grande interesse. Laurence Madeline explica: “Picasso se apossa da obra de Manet: sua composição, seus personagens, a relação entre eles, que Picasso já havia desenvolvido. Ele copia e interpreta ao mesmo tempo”.

(Mestre consumado, Picasso inventou uma forma de concentração capaz de reunir, num único traço, os atos de imitatio e aemulatio!)

Depois de adestrar-se nos desenhos e esboços, em 1960 o espanhol finalmente recriou a tela de Manet em sua própria pintura — e isso apenas pela primeira vez, pois ele repetiu o gesto inúmeras vezes. Por fim, em 1962, Picasso produziu maquetes das personagens do quadro de Manet, tornando seus volumes na tela projeções ideais no espaço. E, com base nesse trabalho, Carl Nesjar criou esculturas que, hoje, estão dispostas, lado a lado, no Moderna Museet, em Estocolmo. O círculo se completou: da tela de Manet à obsessão de Picasso, terminando na materialidade de esculturas ao ar livre.

Nem sequer mencionei que, por seu turno, Manet pensou seu quadro-manifesto reciclando obra de Tiziano e gravura de Marcantonio Raimondi. E como se não fosse bastante, Raimondi inspirou-se em tela de Rafael… Vale dizer, o circuito mimético apenas se intensifica, “nesse exercício do copiador copiado” — na expressão maliciosa de Laurence Madeline.

É evidente que estamos longe da noção de “anxiety of influence”, de Harold Bloom, ou da ideia do “burden of the past”, de W. Jackson Bate. Pelo contrário, em diálogo com os pressupostos da teoria mimética, a poética da emulação permite imaginar a “produtividade da influência”, pois a tradição, menos do que um peso, aparece como ponto de partida incontornável.

Como no universo da ars combinatoria: a existência de regras é condição de liberdade.

Como no jazz: o improviso demanda o rigor da disciplina.

Emulação como procedimento
Outra exposição ajuda a esclarecer ainda mais minha perspectiva.

Refiro-me à exibição Turner and the Masters, realizada em 2009, cujo título, por si só, evidencia a proximidade de procedimentos miméticos — seja no século 19 inglês ou no século 20 parisiense.

Exatamente como ocorreria com Picasso, a carreira de Turner consistiu numa série de apropriações de obras-primas, estimulada por uma rivalidade constante com seus contemporâneos: a técnica da imitatio e da aemulatio forneceu a régua e o compasso do esforço do “Painter of Light”.

David Solkin anotou com cores fortes o éthos do pintor: “No final do século 18, sua reputação como um prodígio da aquarela começou a ser eclipsada pela estrela ascendente de seu bom amigo Thomas Girtin… Infelizmente, em 1802, a morte prematura do rival fez com que essa competição produtiva terminasse antes mesmo de ter realmente principiado”.

Porém, o contratempo não chegou a diminuir a centralidade da emulação na prática artística de Turner. Afinal, ela orientou seu entendimento do sistema das artes, especialmente no que se refere ao pintor francês do século 17, Claude Lorrain.

Tratava-se de tema delicado: se, para o grande público, a marca-d’água do estilo de Turner é a intensidade da luz que parece ser irradiada pela tela em direção ao espectador, a principal contribuição de Claude à história da arte foi precisamente o desenvolvimento de uma técnica capaz de gerar efeito idêntico. Antes mesmo de Turner merecer o epíteto de “Painter of Light”, o pintor francês inaugurara o modelo.

Na avaliação de Kathleen Nicholson, o gesto de Turner não poderia ser senão “compreender os procedimentos mentais e artísticos de Claude, a fim de não apenas replicá-los em termos formais, mas também de assimilar e modernizar o ideal clássico”.

Eis outra instância em que rivalidade mimética resulta em fecundidade artística.

Obcecado com o paralelo, Turner deixou ao governo britânico um legado especial: duas telas de Claude e dois de seus quadros para serem expostos na National Gallery. O pintor impôs somente uma condição: as obras de Claude, Paysage avec mariage d’Isaac et Rebecca (1648) e Port de mer et l’embarquement de la reine de Saba (1648), deveriam ser colocadas lado a lado com suas próprias criações, Sun rising through Vapour (1807) e Dido building Carthage (1815).

Turner desejava explicitar seu diálogo com Claude, e, ao mesmo tempo, esclarecer o êxito de sua emulação. A complexidade do movimento originou em 2012 uma nova exposição: Turner Inspired: In the Light of Claude — cujo título é um achado feliz, pois subverte a ideia romântica de inspiração, relacionando-a intrinsecamente com a apropriação de um modelo.

Nesse ponto, duas observações se impõem.

Picasso et les maîtres.

Turner and the Masters.

As duas exibições possuem exatamente o mesmo título e idêntica orientação, sugerindo a afinidade estrutural que informa a poética da emulação.

Assinale-se, ainda, um aspecto decisivo: pelo menos parcialmente, Turner talvez tenha concedido importância central à emulação porque, no sistema de artes europeu, a pintura britânica nunca ocupou uma posição canônica. Daí, a aguda necessidade de confronto com os modelos hegemônicos de seu tempo: as tradições pictóricas italiana, holandesa e francesa.

(Exatamente como, ainda hoje, comporta-se um artista ou intelectual latino-americano.)

David Solkin intuiu com agudeza a associação entre emulação e rivalidade na arte de Turner; no fundo, em Machado de Assis: por uma poética da emulação, pretendi oferecer um novo retrato de Machado de Assis mediante o resgate de sua complexa relação com Eça de Queirós, momento em que o autor de Dom Casmurro principia a resgatar conscientemente a técnica da aemulatio.

Pois bem: uma exposição realizada em 2009, enfatizou o tema. Penso em Titian. Tintoretto, Veronese: Rivals in Renaissance Venice. Nas palavras reveladoras do curador Frederick Ilchman:

O Cinquecento, ou o século 16, foi uma era de rivalidade artística em Veneza. Os melhores pintores floresceram nesse contexto de ambição, inveja e pressão. A história desse tempo é povoada de anedotas e expressões que esclarecem um ponto fundamental: os pintores, seus mecenas, e o público, todos entenderam que a competição e a demanda crescente por quadros favoreceram o pleno desenvolvimento dos artistas, fazendo de Veneza um centro não apenas comercial mas também artístico.

Essa passagem ilumina o aspecto potencialmente produtivo do desejo mimético. Nas relações miméticas, em geral, sujeito e modelo encontram-se a tal ponto concentrados numa espiral de rivalidades que tendem a esquecer o objeto de desejo. No entanto, o procedimento artístico definidor da emulação implica o retorno do objeto, pois, nesse caso, a rivalidade só tem sentido se resultar na produção de uma nova obra.

Veneza tornou-se, assim, o palco de um vigoroso sistema interno de emulação, antecipando em séculos o duelo Matisse Picasso.

E não é tudo.

O século 16 italiano colocou em cena uma polêmica entre as escolas romana e veneziana, vale dizer, entre o primado meticuloso do desenho e a relativa autonomia da cor na composição: numa palavra, a disputa entre Rafael e Tiziano. Emulação às avessas, decerto, pois opostos os rumos, mas, nem por isso, menos competitiva.

A referência à rivalidade das escolas italianas permite trazer à discussão um nome-chave para o ulterior aprofundamento do quadro teórico inaugurado pela poética da emulação: El Greco. Aliás, o epíteto dado ao cretense Domenikos Theotokopoulos equivale a uma involuntária metonímia de sua trajetória.

Na época, Creta era colônia de Veneza. Por isso, não surpreende que El Greco tenha viajado para a metrópole a fim de ampliar o horizonte de suas realizações. E, como um autêntico “wheeling stranger of here and everywhere”,[2] ele permaneceu na cidade tempo suficiente para dominar o novo estilo veneziano. Sua próxima parada conduziu o cretense à cidade de Roma, onde permaneceu aproximadamente cinco anos. Mais uma vez, ele assimilou as contribuições da escola de Rafael, preservando porém elementos tanto da tradição bizantina quanto da pintura veneziana.

Fiel à vocação peregrina, favorecedora de uma capacidade onívora de assimilação de procedimentos artísticos e princípios estéticos, El Greco conheceu uma curta permanência em Madri, antes de finalmente fixar residência em Toledo.

Lugar simbólico, cenário da primeira experiência decididamente multicultural da civilização europeia, cujo momento mais expressivo continua sendo a “Escuela de Traductores de Toledo”. Nos séculos 12 e 13, sábios árabes, judeus e cristãos trabalharam juntos num processo exemplar de tradução e retradução trilíngue. Desse modo, preservou-se o legado da cultura grega clássica, ampliando-se, e muito, o futuro repertório humanístico europeu. Toledo tornou-se uma autêntica cidade-ponte entre as tradições culturais do Oriente e do Ocidente.

Por isso mesmo, El Greco não poderia ter imaginado lugar mais propício para encerrar sua carreira e criar algumas de suas telas mais celebradas; afinal, ele e a cidade de Toledo são duas faces da mesma moeda, cuja circulação esteve inscrita desde os primórdios de seu percurso. Essa dimensão foi destacada na retrospectiva El Greco, organizada em 2003.

Nas palavras de John H. Elliott:

O mundo do Mediterrâneo do século 16 — o mundo de El Greco — testemunhou a coexistência de três civilizações, que interagiram e se enfrentaram: o Ocidente latino, a ortodoxia grega oriental e a civilização islâmica. Como cretense, logo, sujeito à República de Veneza, Domenikos Theotokopoulos, conhecido como El Greco (1541-1614), pertenceu tanto à Grécia quanto à Cristandade latina. Ele e sua geração passaram a maior parte de suas vidas à sombra do confronto entre cristianismo e islamismo.

A poética da emulação pretende oferecer um quadro teórico capaz de lidar com as circunstâncias do cruzamento de culturas, tradições e opções estéticas.

(No mundo contemporâneo, tal poética deveria transformar-se em política cultural — cada dia mais necessária.)

NOTAS
[1] Parte de texto escrito como prefácio à edição norte-americana de Machado de Assis: por uma poética da emulação. A edição em inglês, Machado de Assis: Toward a Poetics of Emulation, será lançada este ano pela Michigan State University Press.

[2] William Shakespeare. Othello. Edited by Norman Sanders. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, 1.1, p. 71.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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