A Lírica do Exílio e a cultura brasileira (final)

Na coluna passada, mencionei o efeito principal da “lírica do exílio” no plano da reflexão: a “epistemologia da distância”
01/08/2014

Um resíduo-ruína
Na coluna passada, mencionei o efeito principal da “lírica do exílio” no plano da reflexão: a “epistemologia da distância”. Trata-se de movimento muito similar à descrição do trabalho do antropólogo, proposta por Clifford Geertz, em seu constante deslocamento entre “being there” e “being here”; num vaivém entre o “lá” e o “cá” que não deixa de recordar a experiência de pensamento definidora dos versos de Gonçalves Dias.

Portanto, vale a reiteração: as formas poéticas da lírica do exílio são exercícios antropológicos que ajudam a entender os paradoxos da cultura brasileira.

Epistemologia da distância, por isso mesmo, dominante no pensamento social. Sergio Buarque de Holanda plasmou Raízes do Brasil durante sua permanência na Alemanha. Gilberto Freyre logrou o esboço final de Casa-grande & senzala nos Estados Unidos, ministrando curso na Universidade Stanford, depois de viajar pelo Deep South, chocando-se com as diferenças entre a experiência da escravidão nos dois países — isto é, segundo seu ponto de vista.

Fenômeno idêntico determinou a rica tradição do ensaio hispano-americano, iniciada por Domingo Faustino Sarmiento com a escrita de Facundo (1845); e isso enquanto se encontrava exilado no Chile. No século seguinte, Octavio Paz descobriu a figura-chave do “pachuco” durante sua permanência em Los Angeles e, através do “pachuco”, esboçou uma radiografa do dilema mexicano em El labirinto de la soledad (1950).

(A próxima coluna, aliás, será dedicada à intuição de Octavio Paz sobre o dilema mexicano.)

Na experiência história brasileira, e na esteira das obsessões românticas, o modernismo já tinha aprendido a tornar a distância, produtiva.

Mário de Andrade desenvolveu uma das mais agudas reflexões acerca do tópico. Ele identificou a onipresença do motivo na formação da literatura brasileira, antecipando uma conhecida observação de Sérgio Buarque, que veremos adiante, sobretudo no tocante à sobrevida de ideais românticos em movimentos posteriores: “Nos poetas românticos o tema do exílio e do desejo de voltar é frequente. Com o neorromantismo dos nossos parnasianos, o tema das barcas, das velas que partem e ‘não voltam mais’ foi substituindo a ave que voltava ou queria voltar aos ninhos antigos”. O tópos retorna no modernismo, parcialmente esvaziado da nostalgia da pátria, é bem verdade, pois relacionado ao desejo de fuga do cotidiano hostil: “No… neo-neo-romantismo dos contemporâneos (…). Incapazes de achar a solução, surgiu neles essa vontade amarga de dar de ombros”.[1] Para os modernistas, o sentimento de exílio seria solidário ao ennui baudelairiano, em lugar de preso à angústia com as incertezas da nacionalidade nascente. De qualquer modo, a permanência da ideia sinaliza a força da mentalidade romântica na consciência nacional.

A lírica do exílio, de fato, é o mais poderoso resíduo romântico presente na geração modernista.

Penso, claro está, na tirada do autor de Retrato do Brasil:

Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy — umbigo do mundo — descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia.[2]

Exílio como eixo
As edições de Raízes do Brasil apresentam mudanças intrigantes. Na primeira edição, publicada em 1936, o livro principia com um otimismo que será devidamente temperado nas versões posteriores:

Todo estudo compreensivo da sociedade brasileira há de destacar o fato verdadeiramente fundamental de constituirmos o único esforço bem-sucedido em larga escala, de transplantação da cultura europeia para uma zona de clima tropical e subtropical. Sobre território que, povoado com a mesma densidade da Bélgica, chegaria a comportar um número de habitantes igual ao da população atual do globo, vivemos uma experiência sem símile.

Para que o efeito de contraste fique ainda mais claro, reproduzo agora a abertura da edição de 1967, o texto definitivo de Raízes do Brasil; a edição, via de regra, que o leitor tem em mãos:

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências.

No primeiro caso, a experiência brasileira é sem igual porque exitosa. E o sucesso parece necessariamente sugerir que a aclimatação da cultura europeia ocorreu da melhor maneira possível. O parágrafo de abertura da primeira edição parece, portanto, a própria metonímia do título. O intérprete encontra os fundamentos da formação social, já que, desde seus primórdios, o processo civilizatório brasileiro exemplificaria uma feliz e rara coincidência entre intenção e gesto. As raízes do Brasil podem ser reveladas, inclusive vistas a olhos nus, fratura exposta sem dor alguma, pois constituímos o único esforço bemsucedido de transculturação.

Na segunda passagem, porém, a modificação não poderia ser maior, já que a experiência histórica brasileira aparece condenada ao descompasso entre as ideias e seu lugar. Destaque-se o fator decisivo: não se trata de correção estilística, que vise aprimorar a expressão ou torná-la mais clara, tampouco do acréscimo de novos dados, que aprimorem o argumento, mas da supressão completa de ideiachave, simplesmente substituída pelo seu contrário. Os fatores da formação social brasileira que surgiam caracterizados como o único esforço bemsucedido de transplantação cultural em larga escala, surgem como definitivamente estrangeiros às condições tropicais. O trânsito do próprio ao alheio realiza-se sem mediações, como se entre as duas passagens não residisse um paradoxo de difícil entendimento. Contudo, apesar da notável mudança, tanto nas primeiras edições quanto na definitiva segue o célebre trecho (com pequenas modificações):

Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.

Os brasileiros tiveram uma experiência única porque bem-sucedida, mas, ao mesmo tempo, como resultado, vivem desenraizados em seu próprio país. Esse paradoxo não tem sido devidamente avaliado.

Vale dizer: como ser ao mesmo tempo bem-sucedido e desterrado?

Exílio como experiência de pensamento
Devemos a José Guilherme Merquior o ensaio mais agudo sobre o assunto. Em O poema do lá, ele enfrentou o problema: como entender a ausência de adjetivos no poema de Gonçalves Dias, estudado na coluna do mês de junho? Ora, precisamente o poema que se tornou o símbolo da nacionalidade distingue-se pela inexistência de qualificativos da pátria. Aurélio Buarque de Holanda propôs uma resposta engenhosa: a ausência de qualificativos daria aos substantivos uma concretude inédita, como se o poema se tornasse, por assim dizer, um retrato em preto e branco da realidade descrita.

A hipótese é interessante, mas Merquior atinou com uma possibilidade ainda mais fecunda:

(…) o simples comparar já nos abre uma nova via de interpretação. (…) Não é tanto por evocar elementos do país onde se nasceu que a canção se desenvolve como expressão de uma saudade; é antes a saudade que, como se preexistisse a todo dado objetivo, oferece ao poeta a pura afetividade com que julga ambos os lugares, o de ‘aqui’ e o de ‘lá’. (…) Nenhum juízo objetivo, e nenhuma realidade objetiva.[3]

A terra natal não possui características que permitam defini-la em si mesma, logo, como adjetivá-la? Trata-se da operação mental do poeta que compara os elementos comuns à pátria e aos demais lugares, julgando-os superiores sempre que pode encontrá-los “lá”, isto é, em sua terra, pois o poeta se encontra temporariamente desterrado. Mas os elementos assinalados necessariamente também existem “cá”, na terra alheia, ou a comparação seria impossível. Portanto, a ausência de adjetivação corresponde à falta de traços característicos do “Brasil”, isto é, exclusivamente “dele”. Por isso, como vimos no primeiro texto desta série, o poema de Gonçalves Dias não emprega qualificativos a exemplo do pomposo O dia 7 de setembro, em Paris, de Gonçalves de Magalhães, com seus versos envergados à força de uma miríade de adjetivos — “belo céu”; “ares embruscados”; “mimoso colibri”; “sabiá canoro”; “mar agitado”.

Contudo, apesar da brilhante análise, Merquior terminou reproduzindo a subjetividade que, segundo sua leitura, qualificaria a Canção do exílio.

Leia-se a conclusão do ensaio:

Profundamente brasileira é a saudade da terra natal, na forma de um desprezo cego pela realidade objetiva do país. (…) desgraçados de nós se perdermos a fé desse amor-vontade; desgraçados de nós, se então justificássemos o amor da nossa terra pela sua grandeza palpável — porque teríamos perdido a feição mais nobre do sentimento da terra natal, que é essa reserva, esse poder de amá-la, sem outra justificativa que o próprio amor. (p. 67-8)

Por que não radicalizar sua brilhante análise, propondo a objetivação do dado subjetivo?

Dito de modo mais claro: o não ser isso nem aquilo pode provocar uma retomada vigorosa do tema do exílio, em lugar de projetar no mais precisamente o que o procedimento comparativo impossibilita. Esse mais deve necessariamente apontar para o decisivo menos, que nada tem a ver com sentimento de inferioridade, mas que assume (e o paradoxo é deliberado) o caráter incaracterístico da pátria construída com base em operações comparativas.

Os mais interessantes intérpretes do Brasil, aqueles cujos textos ainda hoje nos instigam, atualizam a estrutura do poema de Gonçalves Dias. É como se suas obras terminassem por contradizer o projeto que as estimulara, pois, se buscam a especificidade do brasileiro ou a origem da sociedade, terminam afirmando seu traço problemático enquanto formação autônoma. Exatamente como Mário de Andrade concebeu a personagem de sua rapsódia: sem nenhum caráter. Logo, para ser bem brasileiro é necessário nunca encontrar o brasileiro.

Nos termos de Sérgio Buarque: desterrados na própria terra e bem-sucedidos, já que, através de operações tais como o modo comparativo aperfeiçoado por Gonçalves Dias, o incaraterístico se torna estimulante, favorecendo uma constante autoapresentação.

Vilém Flusser, por exemplo, aceitou o desafio de pensar a condição do exílio como definidora de uma identidade paradoxal. Ele definiu a condição humana a partir da imigração. O filósofo é o exilado consciente de seu perpétuo nomadismo — a filosofia se transforma literalmente num exercício peripatético, num constante ir do “lá” para “aqui”, e vice-versa. Macunaímico, o brasileiro seria o habitante permanente da pátria-exílio, embora não necessariamente um filósofo em estado bruto. O próprio título do livro de Flusser, A fenomenologia do brasileiro, apresenta sinteticamente seu conteúdo: é como se o brasileiro não suportasse um investimento ontológico, mas somente uma inscrição fenomenológica.

Trata-se de abordagem muito estimulante, que, em diversos aspectos, dialoga com teses consagradas por Sérgio Buarque. Contudo, Flusser não compreendeu a sutileza da Canção do exílio, lendo em versos como os de Gonçalves Dias um “amor pelas palmeiras e pelos sabiás e pelas flores, e em geral pelo berço esplêndido, [que] não passa de subliteratura”.[4]

Pelo contrário, deve-se aprofundar o paradoxo. Isto é, Sérgio Buarque identificou um fenômeno importante, mas que não soube desenvolver, suprimindo o parágrafo de abertura na edição definitiva de Raízes do Brasil.

Não terá chegado a hora de o pensamento social brasileiro deixar-se tocar pela experiência de pensamento subjacente à Canção do exílio? O próprio Flusser, apesar da crítica implacável às palmeiras e aos sabiás, foi quem melhor sintetizou sua radicalidade.

Não seria essa a melhor explicação para o eterno retorno aos versos de Gonçalves Dias?

Notas

[1] Mário de Andrade. “A poesia em 1930”. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1943 [1931] p. 31.
[2] Paulo Prado. “Poesia Pau-Brasil”. Oswald de Andrade. Pau-Brasil. São Paulo: Globo, 1990, p. 57.
[3] José Guilherme Merquior. “O poema do lá”. Razão do poema. Ensaios de crítica e de estética. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996 [1965], p. 59.
[4] Vilém Flusser. A fenomenologia do brasileiro. Gustavo Bernardo (org.). Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998, p. 65.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

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