A mãe sempre nos quis ao lado de Deus. Ao pai, era indiferente — no bar do Gábito, copo tremulando entre os dedos sujos de terra. Nada de rezas, orações silenciosas, penitências. O estrondo seco das bolas de bilhar na mesa empenada lhe bastava para a sobrevivência. À mãe, eram indispensáveis o afago divino, a presença silenciosa do desconhecido. O arado invisível pronto para fecundar o terreiro onde brincávamos alheios às suas aspirações divinas.
Pequenos, mirrados, fomos todos os três filhos à igreja. Ficava em frente à escola de madeira. A igreja também era de madeira. Uma fagulha e nossa salvação arderia em chamas. Alfabetizados, iríamos à catequese. Embrenhar-se pela caligrafia de Deus em busca da salvação eterna. No início, todos os sábados à tarde. Depois, com a proximidade da Primeira Comunhão, também aos domingos após a missa. A barriga roncava de fome às bordas do horário do almoço — o melhor da semana, quando tínhamos direito a frango assado e refrigerante. A mãe esperava ansiosa a chegada do domingo para encontrar-se com Deus na confissão, na comunhão, no ato de contrição — rimas pobres de uma vida miserável. Nós, pela garrafa de coca-cola, o gás a estourar no céu da boca, o arroto inevitável.
A placidez da foto dissimula o meu terror. Eu e o irmão frente a frente. Os rostos próximos, respiração hesitante. As mãos unidas em forma de oração. São meia dúzia de fotografias da Primeira Comunhão. Tínhamos não mais que dez anos de idade. Certamente entre as imagens já amareladas esteja a única fotografia com toda a nossa família reunida. Deus, às vezes, faz milagres. O pai e a mãe a ladear a prole de três filhos. Esta família já não existe: minha irmã morreu há treze anos; a mãe, há poucos meses. Meu irmão está por aí. O pai, feito um fantasma, raramente cruza o portão da minha casa.
Naquele tempo, nossa família cabia em 150 centímetros quadrados de papel. Hoje, basta uma fotografia 3×4.
Às vésperas da missa, o pavor. Estávamos prontos para a Primeira Comunhão. Antes da cerimônia que nos levaria ao encontro de Deus, precisávamos purificar a alma, arrancar a craca do corpo pecador. No sábado, os padres nos esperariam para a confissão. Nunca gostei de conversar com estranhos. E naquela tarde dos meus dez anos, teria de confessar os segredos mais terríveis, derramar sobre a batina minhas faltas, meus deslizes, minhas desgraças. “Contem tudo ao padre”, disse-nos uma mãe feliz com seus pequenos homens quase santos. Tudo o quê, meu Deus?
Sim, eu pecara. Pecara muito naquela breve estada sobre a terra, desde que fora arrancado do útero da mãe pelas mãos de uma parteira chamada Elza. Mas tinha dúvidas dos meus delitos diante do Criador. Seria pecado o toque delicado no sexo diminuto? Era tão bom sentir os dedos na quentura entre as pernas. Roubei uvas e morangos para comer. Tinha fome. Seria pecado saciar a fome na fartura alheia? Cobicei (e como) a bola de couro do menino rico que nos ignorava. Mas como me saíam tortos os chutes no frasco vazio de álcool. Uma bola em forma cilíndrica. Era branco como uma bola, mas desajeitado como minha infância. Teria de sentar no banco de madeira escura da igreja São Judas Tadeu e abrir a boca para escancarar as falhas que me afastavam do Paraíso. “Contem tudo ao padre.” Sim, mãe, contaremos tudo. Esvaziaremos nossos embornais pestilentos.
Sentei-me na borda do banco. Diante de mim, um homem. O pavor aumentou muito quando meu corpo de criança aterrissou na terra desconhecida. Benzi-me com lentidão. O sinal da cruz a rasgar o meu peito. Tentava agarrar-me aos ponteiros do relógio, arrastá-los em direção contrária. Queria ser Deus e congelar o tempo, voltar para o lugar de onde nunca deveria ter saído. Levantei a cabeça e encontrei um velho de barbas longuíssimas. Hoje, tenho certeza de que era um personagem do Senhor dos Anéis. Viera de outro mundo para purificar-me. Um filtro na cozinha a tornar a água menos imunda. Colocou a mão em minha cabeça, afagou meus cabelos e, então, abriu a boca. Nunca mais esqueci o hálito quente, o cheiro ruim, de algo amanhecido, esquecido em algum lugar. Gaguejei com os olhos para o alto em busca de alguma salvação. Na parede, um Cristo imóvel a sangrar mãos e pés. Nos outros bancos, meus colegas de martírio sacolejavam os lábios com timidez. Éramos um bando de meninos assustados. Baixei a cabeça e balbuciei meus mais terríveis pecados: matei passarinhos, padre; ofendi a mãe em pensamento; tive preguiça de ir à escola; fingi dores de cabeça para não vir ao catecismo; xinguei meu irmão com todas as minhas palavras. Pecados inconfessáveis, releguei ao esquecimento. Ninguém precisava saber que eu era um devasso no calor do beliche e um ladrão de frutas aos dez anos de idade.
Ao final da lista de atrocidades contra Deus, o padre olhou-me com ternura. Sorriu os dentes amarelos. Afagou novamente meus cabelos. E deu-me a pena de algumas orações. Coisa simples. Fez o sinal da cruz sobre o meu corpo. E disse “Vai, meu filho. Fique com Deus”. O hálito do padre barbudo impregnou-me para sempre. Nunca mais me abandonou. Sim, a eternidade existe. Ajoelhei-me e rezei quase todas as orações impostas na confissão.
“Contaram tudo ao padre?”. Sim, mãe, contamos tudo. Naquele almoço, além de frango e refrigerante, teríamos direito a três picolés.
NOTA
Crônica publicada originalmente no Vida Breve.