Terminei a última coluna anunciando o estudo de Fim, romance de estreia de Fernanda Torres. Além disso, afirmei que se tratava da mais talentosa produtora de textos do cenário contemporâneo.
E creio não ter exagerado.
O leitor deve interromper a leitura deste artigo e verificar por si mesmo. As crônicas publicadas na Folha de S. Paulo encontram-se disponíveis no sítio do jornal: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/fernandatorres/.
As crônicas de Fernanda Torres reúnem observação aguda do cotidiano, reflexões originais acerca de temas complexos e uma escrita que estimula o ato de releitura. Portanto, dediquei-me com grande interesse à leitura de seu romance de estreia.
Não comentarei a constrangedora “ação entre amigos” que cercou seu lançamento. Surgiram artigos elogiando o texto antes de sua publicação, isso para não mencionar o aparecimento de inúmeras notas celebrando o talento literário da autora. No fundo, ela é a mais prejudicada por esse tipo de cumplicidade. Afinal, em lugar de ser discutido com seriedade, o romance transforma-se em pretexto para a reiteração de velhas práticas.
(Esclareço que não me refiro à intensa promoção realizada pela Companhia das Letras, que já havia feito esforço similar na apresentação de Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera. Pelo contrário, o destaque concedido a autores brasileiros é um modelo que deveria ser adotado pelas demais editoras.)
Concentro-me no que importa: o texto de Fim.
O projeto e estrutura do romance
O romance arma uma equação potencialmente paradoxal e, dessa inesperada conjunção, a estreia de Fernanda Torres poderia ter representado um evento.
O leitor é apresentado aos últimos momentos da vida de cinco amigos: Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro. A finitude é o tema que alinhava as narrativas. Os cruzamentos entre as histórias permitem uma forma elaborada de lidar com a proximidade da morte a partir de múltiplos pontos de vista — aspecto decisivo na leitura que proponho. De igual modo, a presença dos mesmos personagens nas diversas narrativas estimula revisões particulares de circunstâncias semelhantes.
(Como se a autora escrevesse uma tela cubista — por assim dizer.)
Mais: a prosa do romance, com seu tom solar, esclarecido no humor buscado nas situações mais improváveis, cria um interessante curto-circuito entre o tema da finitude e seu tratamento irreverente, às vezes quase debochado. Essa ideia equivale a um achado literário, em virtude da tensão potencialmente produtiva entre tópico e dicção.
Contudo, a escrita de Fernanda Torres fica muito aquém de seu interessante projeto.
O limite típico da fabulação dos produtores de texto revela-se na estrutura do romance. De fato, as cinco histórias são contadas através de idêntica técnica: inicialmente, uma voz em primeira pessoa é apresentada ao leitor, correspondendo às últimas impressões de cada um dos cinco amigos. Em seguida, um narrador em terceira pessoa fornece informações adicionais acerca do falecido, seus parentes e amigos, as circunstâncias de sua vida e enterro, etc., etc.
Vale dizer: como um relógio que apenas tivesse aprendido a marcar as horas, o tique-taque se mantém inalterado ao longo do romance, produzindo um ritmo monótono. É verdade que aqui e ali se esboça uma pequena variação, mas nada que fuja a esse modelo bem cortado.
Eis a marca d’água dos produtores de texto: o número limitado de recursos técnicos. Ora, como a escrita é sobretudo o resultado de um talento intuitivo, falta a necessária meditação sobre técnicas e estilos que somente a leitura sistemática pode fornecer.
Pontos de vista
O romance deveria conter, pelo menos, seis pontos de vista bastante distintos, pois o leitor encontra cinco narradores em primeira pessoa, além do narrador onisciente. A estrutura do romance, mesmo mantendo o ritmo de baixo contínuo do rodízio entre primeira e terceira pessoa, exigiria o desenvolvimento de uma pluralidade de vozes narrativas.
Percebe-se o desafio técnico implícito no romance de Fernanda Torres.
Outra vez, se o projeto promete, a realização é antes um atalho, pois todas as vozes tendem a diluir-se no registro do narrador onisciente.
Comparem-se algumas passagens.
No episódio Ribeiro, o narrador em terceira pessoa resume o drama do casamento de Ciro e Ruth:
Ruth acatou a promessa, não tinha opção, faria o que fosse preciso para não perdê-lo outra vez. Ruth era posse de Ciro. E quanto mais se provava dele, mais difícil era, para Ciro, amar o que lhe pertencia.[1]
A construção sintática é infeliz e o significado da contração dele exige que o leitor complete a frase: “quanto mais [Ruth] se provava dele (…)”. Relevemos o detalhe, aliás, frequente no texto, pois me concentro no caráter unidimensional do ponto de vista.
No episódio Ciro, agora na voz do próprio personagem, portanto, em primeira pessoa, a conclusão é reiterada:
Por que a Ruth não fazia o mesmo com o Ribeiro? O casamento não pode matar a aventura de cada um. Aquilo estava acontecendo comigo, só comigo, a Ruth era livre para ter o que fosse dela. Ou isso ou aquilo o cacete! Isso e aquilo. (p. 171)
Veja-se outra instância do problema.
Álvaro reflete sobre um dos amigos: “Sou da opinião que o Neto ficou casado porque era mulato” (p. 19). No episódio Ribeiro, é a vez do narrador em terceira pessoa tocar na mesma tecla, reafirmando o juízo: “Álvaro creditava a normalidade excessiva de Neto ao fato de ele ser mulato. Havia fundamento na teoria” (p. 126). Sim, especialmente porque as vozes narrativas não chegam a ser independentes da dicção da autora.
Destaque-se ainda o vocabulário usado pelos narradores em primeira pessoa, pois ele também revela o predomínio de uma única voz.
Álvaro é um senhor de 84 anos que será atropelado em poucos minutos. Ao recordar o amigo mais bem-sucedido com as mulheres, recorre à seguinte expressão: “O Ciro passava o rodo” (p. 23, meu destaque). No exato momento em que será atropelado, o senhor rejuvenesce inesperadamente: “O carro deu aquele voo no fim da subida, ela vem descacetada” (p. 28, meu destaque).
Sílvio, o verdadeiro devasso dos cinco amigos, aos 75 anos, prestes a morrer em pleno Carnaval, recorda seus inúmeros casos. Num deles, se envolve com uma “amiga do Ribeiro”. Eis como Sílvio recorda o momento: “O Ribeiro foi andando com a cara virada para trás, um símio raivoso. Ai, que meda!” (p. 62, meu destaque). Aceitemos a ânsia de atualização linguística permanente do personagem. Difícil é confiar em sua capacidade mediúnica:
Chama uma ambulância e pede para me apagar com Propofol. Só serve Propofol! O do Michael! Jackson… Five… Foram embora. Graças a Deus me deixaram em paz. (p. 67)
O duvidoso jogo de palavras, com seu excesso de pontuação e o recurso ao trocadilho fácil e de aceitação imediata, esclarece outro aspecto definidor do produtor de texto: basta a intuição, a necessidade de investir num trabalho sério de pesquisa nunca é prioridade — reescrever o texto com cuidado, nem pensar. Como o romance informa, Sílvio morreu no dia 20 de fevereiro de 2009. Já o malogrado “Michael! Jackson… Five…” faleceu no dia 25 de junho de 2009. O personagem não tinha como aludir a um acidente que ainda não havia ocorrido.
Não se trata de apontar como índice de falta de verossimilhança a inadequação tanto entre narradores e linguagem, quanto entre enredo e conhecimento elementar de fato mencionada na trama. O traço escolar de tal reparo seria suficiente para desautorizá-lo. A questão é bem outra, revelando a onipresença, literal, do narrador em terceira pessoa. Por isso, o mesmo tom atravessa as diversas narrativas, reduzindo a potência de humor à caricatura fácil.
Recorde-se a via dolorosa de Irene. Ela precisava ir “à morgue para reconhecer o corpo” (p. 30) do ex-marido, Álvaro. No local, “o prédio exalava podridão. O cheiro ardia nas ventas, penetrando nos poros mesmo com as narinas tapadas” (p. 31, meus destaques). A relação lógica entre tapar as narinas e impermeabilizar os poros do corpo permanece misteriosa, mas o ponto principal é a necessidade constante de transformar as cenas em comédia rasgada. Um pouco adiante, Irene pensa em tomar água num prosaico bebedouro, porém, ela “deu com os olhos numa barata escura” (p. 31, meu destaque). Se albina fosse, a sede seria satisfeita? O leitor vira as páginas: Irene dirige-se ao cemitério. Eis o que ocorre:
Na calçada, fez sinal para o primeiro táxi. Era um Corsa velho, sem ar, com a marcha solta e um futum exasperante de odorizador de ambiente com sovaco de trabalhador (p. 35).
Álvaro morre no dia 30 de abril de 2014: encontrar um táxi nessas condições já seria uma proeza… Além disso, reunir essa circunstância a “um futum exasperante” revela um apego imprudente ao grotesco — isso para não mencionar a desagradável rima odorizador/trabalhador; aliás, um cuidado básico de revisão do texto evitaria deslizes similares.
No último episódio, O próximo, o padrão se repete. Maria Clara, enfermeira e inesperado anjo da morte de Ciro, dialoga com uma colega. Eis a descrição do narrador: “Gisa era de esquerda, politizadíssima, prestava serviço social, lia livros que pesavam mais do que um quilo e fumava na varanda do segundo andar” (p. 191). Será possível alguma forma de experiência que escape ao lugar-comum? Talvez não; na mesma página, Maria Clara encontra o namorado; naturalmente, a noite é um malogro: “Jantaram na casa dela, um ravióli congelado e um pudim de caixinha”.
Linguagem
A linguagem do romance apresenta um duplo impasse.
Em primeiro lugar, o narrador recorda o veio oitocentista mais tradicional: trata-se de autêntica voz-farol que tudo sabe e, especialmente, pouco deixa para a imaginação do leitor.
Leia-se o episódio de abertura, Álvaro. Irene, comparece a contragosto em seu velório. Diante do corpo do ex-marido, passa umas três páginas recordando o fracasso da relação dos dois. O narrador decide esclarecer o óbvio: “O pensamento vagara sem que se desse conta” (p. 34).
Esse narrador, tipicamente oitocentista, é recuperado sem qualquer distanciamento ou intenção paródica; é como se alguém decidisse escrever um romance em pleno século 21 sem ter lido as transformações impostas ao gênero no século anterior. O efeito é o de um anacronismo involuntariamente divertido, que explicita o segundo problema: o emprego obsessivo do lugar-comum disfarçado em máximas de sabor filosofante.
(Vejamos se o leitor está de acordo.)
No episódio Ribeiro, o narrador em terceira pessoa, sem constrangimento aparente, assim define uma personagem: “Ruth era Oxum, Maria e Madalena. O feminino pleno, sempre foi assim. (…) Serviria ao burguês e ao guerreiro, era Afrodite encarnada, o feminino em pessoa” (p. 111, meus destaques). Em todo o livro essas referências dominam. Por exemplo, eis a caracterização de outra personagem: “Ao contrário de Ruth, Irene nunca soube o que significava ser feminina” (p. 54). Leia-se também a descrição do marido de Ruth: “Ciro era a luxúria, a beleza, o irracional, era o amor virginal, a adolescência, o macho por excelência” (p. 146, destaque meu). Por fim, tudo se repete na apresentação dos amigos, ao que parece num instante especial: “Eram homens maduros e desesperados. Viviam o apogeu do macho e o pressentimento da inevitável queda” (p. 85, destaque meu).
Aliás, o tema do feminino pleno retorna e, pelo avesso, descortina o horizonte restrito de leituras da autora:
O ato supremo do romantismo é o suicídio. Ruth nasceu com o defeito de ser feminina ao extremo e, por consequência, romântica em excesso. Sempre viu nisso vantagem, mas, agora, que descobria a fragilidade de sua natureza, daria tudo para se livrar de si mesmo. Se possuísse a audácia de Bovary, tomaria cicuta, a nobreza de Sônia, enfrentaria a Sibéria, se miserável, como Fantine, arrancaria os dentes. (p. 120-121)
O surpreendente não é apenas a banalidade da observação, pois ela poderia ter um efeito paródico de grande interesse, a exemplo de John Barth, que se apropria de procedimentos do romance do século 18 com notáveis resultados, já que o faz com a consciência de leitor cuidadoso das revoluções ocorridas no gênero no século 20. Fernanda Torres, pelo contrário, parece acreditar na novidade dos recursos inventados ou aprimorados por Flaubert, Dostoiévski e Hugo.
É surpreendente o limite da linguagem da romancista estreante, como se a revisão cuidadosa no nível da frase importasse menos do que a sucessão de pequenos incidentes. Por exemplo, no necrotério, “uma senhora obesa (…) sofria golfadas de horror e berrava como uma besta-fera” (p. 31, destaques meus). Esse é o nível dominante da escrita. Encontram-se pérolas: “Sérgio lhe levara o hímen, é certo, mas não arranhara em nada a inquietação” (p. 113, destaque meu). Assim: “Lhe levara”. Ou: “Cinira, a gordinha do escritório, carpia o fim dos sarros com o chefe no cafezinho” (p. 148, destaque meu). Repare-se no gosto pelo grotesco: as mulheres são fêmeas plenas ou obesas e gordas; os homens, machos por excelência ou, como Álvaro, sofrem com a “cornidão” (p. 16) e a “própria brochura” (p. 17).
A qualidade literária de Fim tem sido celebrada por muitos. Será que seus endossadores realmente leram o romance?
O impasse
Fim esclarece os impasses que cedo ou tarde afetam a escrita do produtor de textos, por mais talentoso que seja: a repetição de recursos técnicos limitados; a ausência de revisão cuidadosa da própria escrita; o fôlego curto que se expressa numa linguagem dominada por clichês; a leitura insuficiente da tradição literária.
Em que medida, a voga dos produtores de texto relaciona-se com o nó górdio da literatura brasileira contemporânea? A presença pública do escritor aumentou exponencialmente com a multiplicação de festivais literários em todo o país. No entanto, os índices de leitura não conheceram um crescimento similar.
Por quê?
A emergência do produtor de texto será um sintoma dessa circunstância?
(Tema da próxima coluna.)
[1] Fernanda Torres. Fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 119. Nas próximas citações, apenas indicarei o número de página.