Metáforas espaciais e seus riscos
Terminei a última coluna destacando a necessidade de refinar nosso entendimento acerca das noções de centro e de periferia. Especialmente, questionei a idéia de que à condição periférica corresponderia um olhar específico, dotado de qualidades objetivamente identificáveis.
Atribuir ao lugar periférico habilidades especiais — seja na criação, seja na reflexão — implica transformar um dado histórico em forma artística ou em experiência de pensamento sem o esclarecimento das indispensáveis mediações entre níveis tão diversos.
Ademais, há uma ironia involuntária nessa equação, de sabor inegavelmente sociológico: na circunstância periférica, intelectuais e artistas, via de regra, ocupam uma posição econômica e política muito mais central do que a dos seus pares nos países considerados hegemônicos!
(Basta pensar na síndrome dos herdeiros, divididos entre as facilidades derivadas do lugar preciso que ocupam e a angústia de descobrir o próprio mérito, apesar da centralidade de sua posição social.)
O lugar periférico, assim, não deve ser compreendido como fonte unívoca de determinação, porém como potência que pode ou não ser ativada. Por isso, proponho que pensemos em lugares de enunciação, definidos por relações dinâmicas e assimétricas de poder político, econômico e simbólico.
Desse modo, driblamos o risco envolvido nas metáforas espaciais que se tornaram autêntica respiração artificial nas reflexões sobre a condição periférica. Tais metáforas acentuam a contradição: ora, exemplo único de uma alquimia que sempre conhece êxito, a periferia se converte em previsível centro de irradiação de um olhar misteriosamente superior, favorecido por uma agudeza exemplar, pois enraizada na própria circunstância periférica.
(É preciso abandonar essa ilusão.)
A periferia, ou a condição não hegemônica, é tão somente um lugar específico de enunciação, comportando possibilidades e limites como todos os lugares de enunciação, uma vez que lugar algum pode ser compreendido como absoluto, completo em si mesmo. Além disso, ele possui contradições internas e uma pluralidade de alternativas de atualização, que se cumprem ou se frustram a partir de ações determinadas.
Reconheço que apresento somente o esboço de idéias que exigem um desenvolvimento muito mais complexo.
Não importa: a tarefa crítica demanda correr riscos.
E a escrita ensaística convida a formular o que apenas se intui.
Shakespeare: a invenção do sujeito periférico?
Tal perspectiva permite ler com novos olhos algumas peças de William Shakespeare, especialmente Othello (1604) e The tempest (1611), como instâncias modernas da invenção do conceito de periferia, isto é, de um lugar não hegemônico de enunciação, oferecendo uma cartografia da criação de centros hegemônicos e seus espaços associados, difundidos em escala planetária.
Começo pela “tragédia do mouro de Veneza”.
O personagem Otelo pode ser visto como a primeira figuração do sujeito periférico, cuja angústia se relaciona menos com os seus ciúmes e muito mais com a consciência da precariedade de sua origem. Em outras palavras, os ciúmes do valente general não seriam a causa da tragédia, porém o efeito da instabilidade derivada da condição não hegemônica.
Ora, poderoso em tempos de guerra, como poderia Otelo situar-se em tempos de paz?
Como o próprio personagem afirma:
(…) Rude am I in my speech
And little blessed with the soft phrase of peace.[1]
Na ausência da guerra, ou da ameaça de sua iminência, que importância teria Otelo na hierárquica sociedade veneziana?
(Eis a oscilação entre pólos que marca o caráter dinâmico das relações entre centro e periferia.)
Recorde-se que Otelo era oriundo da Mauritânia; daí, chamado o mouro — ou, pelo menos, assim costumamos pensar. Em saboroso estudo, Lampedusa atribuiu a ênfase no aspecto racial a uma tradução apressada: “O Mouro de Veneza, para Cinzio, não é um mouro, porém um senhor Moro, sobrenome muito comum (junto com Moroni e Moretti) na região de Bergamasco”.[2]
O possível erro lingüístico, contudo, se transforma em opção estética, pois Shakespeare converte o caráter forâneo do “mouro” em elemento determinante do texto; aliás, já apresentado na primeira cena. Eis como Rodrigo caracteriza Otelo para o pai de Desdêmona, o influente senador Brabâncio: como acreditar que sua filha tudo tivesse arriscado por um “wheeling stranger of here and everywhere”.[3]
Apesar de ter efetivamente seqüestrado a filha do senador para desposá-la, e isso sem o consentimento formal de seu pai, Otelo é perdoado pelo Senado de Veneza por uma razão que não escapou ao astuto Iago:
(…) For I do know the state,
However this may gall him with some check,
Cannot with safety cast him; for he’s embarked
With such loud reason to the Cyprus wars.[4]
A ação da peça começa em Veneza, o centro do mundo financeiro da época. Porém, não se esqueça que, a partir do segundo ato, a trama se desenvolve sintomaticamente em Chipre, lugar periférico em relação a Veneza, embora central em relação a Mauritânia. Neste sentido, o deslocamento geográfico é exemplar: se o primeiro ato transcorre em Veneza, os quatro últimos têm lugar na ilha de Chipre. E, sobretudo, em tempos de paz. Logo no princípio do segundo ato, escuta-se a reveladora proclamação: “Our wars are done”.[5] A dicção é ainda mais enfática porque se acrescenta um plural, que não deixa de ser ameaçador para um militar de carreira.
Por isso, como pode o mouro manter-se no centro das atenções se os seus serviços de militar não são mais urgentes? Sua caracterização unidimensional tudo esclarece: “the warlike Moor”.[6]
Em tempos de paz, como pode esse guerreiro destacar-se?
Não surpreende, pois, que a ira do mouro se torne incontrolável quando descobre que perderá o comando da ilha para Miguel Cássio. Cruel ironia: ele estava convencido de que já tinha sido substituído por Cássio em seu leito, e agora também o seria no comando de Chipre. Talvez não somente suspeitas de adultério estivessem no pensamento de Otelo, mas o reconhecimento de que, na ausência de guerras, sua residência na terra teria que ser distante, muito distante do centro: afinal, ele nunca deixou de ser um wheeling stranger of here and everywhere. O ciúme do mouro não é causa, porém efeito da consciência de sua condição existencial periférica.
Aliás, em inúmeras passagens reafirma-se que Otelo não é um homem ciumento.
Basta ler o texto com atenção.
Na terceira cena do terceiro ato, Iago busca instilar ciúme em Otelo. Para tanto, repete a palavra jealousy diversas vezes, como se a reiteração lingüística pudesse produzir o resultado que efetivamente termina ocorrendo. O procedimento é notável: como o ciúme costuma ser fruto de suspeitas, e não a confirmação de fatos, todo ciumento se converte num involuntário fabulador, pois, dada a inexistência de evidências palpáveis de infidelidade, não pode senão imaginar histórias, fabricando fantasias de adultério.
Iago sabe muito bem o que faz, repetindo jeaulosy à exaustão.
A reiteração da palavra-chave, ciúme, é fundamental: eis o verdadeiro motor da ação de Iago, tanto no que se refere à posição de comando que perdeu, quanto, e sobretudo, no tocante ao ciúme que o alferes sente do mouro e de Miguel Cássio.
Manipulador habilidoso de autêntico phármakon, Iago busca transferir seus sentimentos para o mouro:
For that I do suspect the lusty Moor
Hath leaped into my seat, the thought whereof
Doth like a poisonous mineral gnaw my inwards;
And nothing can or shall content my soul
Till I am evened with him, wife for wife;
Or failing so, yet that I put the Moor
At least into a jealousy so strong
That judgment cannot cure (…).[7]
Mais que invejoso pela perda de uma posição de comando, Iago é o verdadeiro ciumento da intriga, acreditando que o mouro e inclusive Miguel Cássio mantiveram relações com sua mulher. Não deixa de ser surpreendente que tal circunstância nunca seja assinalada com o devido destaque.
Recupero, então, uma passagem significativa:
O beware, my lord, of jealousy;
It is the green-eyed monster which doth mock
The meat it feeds on (…).[8]
Iago insiste:
Good God, the souls of my tribe defend
From jealousy.[9]
A resposta de Otelo é exemplar:
Why, why is this?
Think’st thou I’d made a life of jealousy,
To follow still the changes of the moon
With fresh suspicions? No, to be once in doubt
Is once to be resolved. (…)[10]
Otelo é cristalino: ciúmes não fazem parte de seu vocabulário; em caso de dúvida, de imediato abandonaria sua mulher. Na cena seguinte, Desdêmona reitera o dito pelo seu marido. Ao presenciar a reação iracunda de Otelo, sua acompanhante pergunta:
Is he not jealous?
Desdêmona responde, convencida do que diz:
Who, he? I think the sun where he was born
Drew all such humours from him.[11]
Mais: em sua última participação, depois de ter executado a Desdêmona, e momentos antes de suicidar-se, o mouro volta a afirmar:
(…) Then must you speak
Of one that loved not wisely, but too well;
Of one not easily jealous but, being wrought,
Perplexed in the extreme (…).[12]
Ninguém contradiz o mouro: parece que disse a verdade; pelo menos os personagens da peça não são tão céticos como os incontáveis eruditos shakespearianos…
Portanto, um leitor atento não deve considerar o ciúme a causa simples da tragédia: deve-se buscar um motor mais complexo para as ações que levam ao assassinato da mulher do mouro.
Penso, em primeiro lugar, no instante da ruptura, quando Otelo aceita a versão maliciosa de Iago acerca do interesse, sem dúvida excessivo, de Desdêmona pela causa de Miguel Cássio. De fato, Shakespeare oferece ao espectador atento inúmeros exemplos da imprudência de Miguel Cássio e Desdêmona, tornando assim ainda menos crível a interpretação dominante da peça, que tudo reduz aos ciúmes desmesurados de Otelo.
O mouro fala consigo mesmo, buscando entender as possíveis causas da infidelidade, que, agora sim, crê ter ocorrido:
(…) Happly for I am black,
And have not those soft parts of conversation
That chamberers have, or for I am declined
Into the vale of years (…).[13]
O mouro internalizou as críticas que Brabâncio, Iago e Rodrigo lhe dirigiram no primeiro ato. Finalmente, Otelo se vê a si mesmo como um stranger of here and everywhere. Então, o amor de Desdêmona se converte num pecado de orgulho: ele imaginou pertencer às altas esferas do círculo de sua mulher; porém, já o sabemos, só em tempos de guerra Otelo é aceito entre os ricos e poderosos venezianos.
Recorde-se, ademais, um ponto crucial: pouco antes de assassinar a Desdêmona, Otelo recebe uma reveladora carta do Dodge, condenando-o a regressar a Mauritânia, o centro mesmo da periferia: eis o que Otelo não pôde suportar!
Conhecemos esse detalhe através de um diálogo tenso entre Iago e Rodrigo, na segunda cena do quarto ato:
Iago — Sir, there is especial commission come from Venice to depute Cassio in Othello’s place.
Roderigo — Is that true? Why, then Othello and Desdemona return again to Venice.
Iago — Oh, no, he goes into Mauritania and takes away with him the fair Desdemona (…).[14]
Ora, os ciúmes são menos determinantes que o jogo hierárquico da triangulação de poder que constitui o mundo moderno, indissociável da constituição de impérios coloniais.
(O tema da próxima coluna.)
[1] William Shakespeare. Othello. 1.3, p. 82. Na tradução: “Rude sou em minhas palavras, e pouco dotado com o doce linguajar da paz (…)”. William Shakespeare. Otelo. Obra Completa. Volume I. Nova versão, anotada de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1988, p. 717-18.
[2] Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Shakespeare. Barcelona: NorteSur, 2009, p. 77.
[3] Othello. 1.1, p. 71. Na tradução: “(…) um estrangeiro vagabundo e nômade, sem pátria e sem lar” (p. 712).
[4] Idem. 1.1, p. 72. Na tradução: “Porque, bem o sei, embora esta aventura possa trazer-lhe algumas complicações, que o Estado não pode, sem riscos, ver-se privado de seus serviços. São tão grandes as razões que levaram a República a confiar-lhe as guerras de Chipre (…)” (p. 712).
[5] Idem. 2.1, p. 95. Na tradução: “Acabaram-se nossas guerras!” (p. 725).
[6] Idem, p. 96. Na tradução: “(…) o belicoso mouro Otelo” (p. 725). Na seqüência, Chipre também é chamada: “(…) this warlike isle”; “(…) esta ilha belicosa” (p. 725).
[7] Idem, 2.1, p. 106. Na tradução: “Pois tenho a suspeita de que o lascivo mouro se insinuou em minha cama, suspeita que, como veneno mineral, corrói-me as entranhas e nada poderá contentar minha alma até que liquide minha conta com ele, esposa por esposa; ou se não puder, até que haja inspirado ao mouro um ciúme tão violento que a razão não o poderá curar” (p. 731).
[8] Idem, 3.3, p. 130-31. Na tradução: “Ó meu senhor, tomai cuidado com o ciúme! É o monstro de olhos verdes que se diverte com a comida que o alimenta!” (p. 745).
[9] Idem, 3.3, p. 131. Na tradução: “Céu bondoso, as almas de toda a minha tribo defendei contra o ciúme” (p. 746).
[10] Idem, 3.3, p. 131. Na tradução: “Que é isto? Que é isto? Acreditas que haveria uma vida de ciúmes, sempre acompanhando as mudanças da lua com novas suspeitas? Não! Para mim, ficar em dúvida, é ficar resolvido” (p. 746).
[11] Idem, 3.4, p. 144-45. Na tradução: “Não é ciumento?”; “Quem? Ele? Acho que o sol de onde ele nasceu, secou-lhe semelhantes humores” (p. 753).
[12] Idem, 5.2, p. 195. Na tradução: “(…) deveis falar de um homem que não amou com sensatez, mas que amou excessivamente; de um homem que não foi facilmente ciumento, mas que uma vez dominado pelo ciúme, foi levado aos últimos extremos” (p. 784).
[13] Idem, 3.3. Op. cit., p. 135. Na tradução: “Talvez porque seja negro e não tenha na conversação as formas flexíveis dos intrigantes, ou, então, porque esteja descendo o vale dos anos (…)” (p. 748).
[14] Idem, 4.2. Op. cit., p.171. Na tradução: “Iago — Senhor, acaba de chegar de Veneza uma comissão especial para colocar Cássio no lugar de Otelo./ Rodrigo — É verdade? Neste caso, então, Otelo e Desdêmona voltarão de novo para Veneza!/ Iago — Oh! Não. Ele vai para a Mauritânia e para lá leva a bela Desdêmona (…)” (p. 769).