Crônicas do estranhamento (6)

Quando a saudade começa a doer no estômago, algumas peculiaridades francesas se tornam um tanto indigestas
Ilustração: Carolina Vigna
06/02/2025

Uma das coisas que eu sempre esqueço é que em alguns trens precisa apertar um botão para a porta abrir. Levo uns segundos para raciocinar. Normalmente tempo mais que suficiente para um francês apressado me olhar de cara feia, apertar o maldito botão e passar pelo o que ele, obviamente, considera um minion batendo com a cara na parede. Não está de todo errado. Todo mundo tem um dia de minion retardado, vocês não me deixem sozinha nessa.

Outra que eu também sempre estranho é que as tampinhas de garrafas pet aqui são presas na garrafa, não se soltam, ficam ali penduradas. Não pesquisei, mas certamente é sobre tartarugas, baleias, poluição, plástico no oceano, algo nessa linha. É uma solução simples, inteligente e, me parece, bastante eficaz. Toda vez, entretanto, eu tento abrir a tampinha completamente, no automático, com a memória do corpo.

No mercado, os leites sem lactose ficam em setor separado e distante dos leites normais. Há um claríssimo preconceito com o intolerante a lactose aqui. É quase uma agressão ao país não comer oito quilos de laticínios por dia. O francês fica pessoalmente e mortalmente ofendido. A solução para sobreviver com alguma dignidade são os lugares chamados de étnicos. Comida árabe, tailandesa etc.

O mesmo com álcool. Eu procurei cerveja sem álcool em talvez uns doze, treze mercados diferentes. Não existe. Deve ser contra a religião local.

Ainda estranhamentos do mercado, fiquei sinceramente surpresa em quão pouca variedade existe de pães de fôrma. Depois, pensando melhor, considerando a quantidade de boulangeries maravilhosas que existem, com pães artesanais e deliciosos, faz sentido. O meu problema é não tenho forno onde estou, então preciso de algo que seja possível enfiar em uma torradeira. O pão industrial na França é a coisa mais sem graça, gosto ou elegância do planeta. O lado bom é que estou comendo bem menos carboidrato.

Uma das pratas da casa, o pain au chocolate, orgulho dos cafés e lanchonetes, além de ter lactose, achei enjoativo no último. Certamente por conta do meu paladar pouco acostumado com açúcar, mas ainda assim… O mesmo com o famoso croissant. Não consegui entender qual é a graça. Ai que saudades de um pão de queijo quentinho, meu deus. Pão de queijo aberto na chapa e um suco de melancia com gengibre, por favor.

Minhas saudades sempre começam pelo estômago. Quando me mudei para São Paulo foi o mesmo. O que eu sentia falta do Rio de Janeiro era a pipoca doce feita com caramelo e não aquela atrocidade rosa que o paulistano considera comestível e o filé Osvaldo Aranha com um exoesqueleto de alho frito. O paulistano coloca alcaparra no bife. Alcaparra, senhor. Está tudo errado.

Lembrei de um amigo querido, saindo de uma cirurgia complicadíssima de intestino e com dieta zero. Não podia sequer beber água e me pede um pacote de cigarro e um filé Osvaldo Aranha do Lamas, um restaurante tradicional carioca. Eu respondo que ele não podia fumar e nem comer nada. Isso já deve ter uns 20 anos. Ele ainda não me perdoou. Eu entendo, aquele filé é realmente fantástico.

A padaria onde Nina e eu tomávamos café da manhã fechou, estamos órfãs. Não sei como vou resolver esse enorme não-problema. Mas já sei que a primeira e mais importante coisa a fazer é tomar suco de melancia com a Nina no colo. Sempre bom ter nossas prioridades bem definidas.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho