Viradas

Os muitos réveillons, com suas boas e más lembranças, contam um pouco a história das nossas expectativas, alegrias, tristezas e frustrações
Ilustração: Bruno Schier
04/02/2025

Onde você passou o réveillon de 2000 para 2001? Pelejei para me lembrar e não consegui. Não sei. Era um negócio importante, mudança de milênio, não qualquer coisa. Naquela época, talvez estivesse em um sítio da família. Será? Quando é que a gente começa a ter noção das passagens de ano? Quando é que elas começam a ser como a gente quis? Se o Natal sempre me pareceu uma enorme e forçada chatice, a virada dos anos tinha mais cara de festa, festa boa, baladinha, muito habitada ou não. Conheço quem prefira passar dormindo, de tevê ligada, luz apagada. Eu sempre preferi as luzes piscando colorido e uma bebida cintilante, com bolhas, cócegas na língua, alcoólica, com música alta, abraçada ou sozinha, tanto faz, e depende da oportunidade.

Numa virada recente, assim como em outras, escolhi o recolhimento, mas não a solidão. Frios e bebidinhas, luzes de boate compradas no shopping das quinquilharias, música alta na caixinha JBL original trazida de alguma viagem, uma playlist do passado e do presente, uma esperançazinha no futuro, certo ar de oração e de despedida. Dançar no meio da sala, sentir o corpo ceder aos 40% de teor alcoólico que certas bebidas têm. É dia de exagerar. É dia de amolecer um pouco os ombros. Na melhor companhia possível, risadas, lembranças, canções repetidas, frases como “e esta, conhece?”, que é quando compartilhamos os gostos e os refrões. As horas passam, fogos de artifício, alguém ao longe faz uma contagem regressiva, a vizinhança não é das mais barulhentas, as cadelas estão quietas, chove e estia, como a vida. O ano vai começar assim, sob água e sem grandes intervalos. Uns dias depois, numa despedida, alguém amado diz “foi bom passar o réveillon com você”, e a resposta vem fulminante: “foi bom passar os últimos anos com você”. É assim: foi bom, e o que será? O ano começa e estamos de partida.

Na peleja de lembrar, espremendo os olhos até, pensei num réveillon com amigos num sítio, à beira da piscina, sem coragem de pular de roupa. Devia ter pulado. Onde estão aquelas pessoas? Acho que só tenho contato vago com uma delas, que vai bem. Espremendo mais, recordo uma virada na praia, disputando lugar na areia, pensando em pular ondinhas, mas tomando conta de criança. Um perigo, tudo um perigo. Más companhias tornam tudo mais complicado. Lembro do bico torto do namorado, não sei até hoje por quê. O que ficou desse réveillon foi um gosto amargo, uma sensação de desperdício. Devia ter pulado as ondinhas sossegada, com meu filho às gargalhadas. É assim que a gente vai estragando as pequenas chances, devagar. Quando vê, passou a vida se ajustando aos caprichos do outro. Adeus, infelicidade. Ela não é problema meu.

Se eu apertar mais a memória, encontro muitos réveillons em casa, meio bêbada, dançando as músicas do momento, imitando a Shakira, pedindo pelo amor de Deus que o ano traga boas surpresas. Nem sempre ele trouxe. Algumas vezes, viramos o ano na casa da melhor amiga. Quintal, comidas, grama bem verde, chuva transbordando das calhas, roupas brancas e amarelas. Que cor você escolhe? Qual é o seu critério? Ou você simplesmente se deixa atacar pelo mau humor? Tenho preferido o amarelo. Há vários anos finjo que acredito que isso me trará dinheiro, que, afinal, é o que sustenta todas as minhas decisões e torna o ano efetivamente menos difícil. Calcinha branca? Melhor. A vermelha pode trazer um furacão desnecessário. Rosa, quem sabe? Amor de quem? Amigas e amigos, o amor mais duradouro de todos, quando aprendemos que assim é.

Talvez eu tenha passado um réveillon num hotel à entrada de uma cidade histórica. Talvez não seja ficção produzida pela minha cabeça, mas isso tem muito tempo. Os fogos barulhentos nos levaram para a janela. Nus? Não sei mais. Numa fase da vida em que é possível amar até o amanhecer. O céu clareia e os perfis dos braços e dos quadris aparecem à contraluz. Cortina esvoaçante, frio do alvorecer, o barulho dos talheres do café desperta a fome, outra fome. Bom dia, roucos. Mais um ano, menos controle. Virados.

Não me vem nenhum réveillon no estrangeiro. Ou estou enganada? Aniversários, sim. Um réveillon disfarçado de Carnaval. A-la-la-ô. Devia ter curtido. Lembro do sítio de outra pessoa e o barulho dos tacos nas bolas de sinuca. Para chegar ao galpão, era preciso atravessar na chuva. Sombrinhas? Não. Moletons de capuz, chinelos, não escorreguem, cuidado. Sinuca, truco e o rock nacional. O dia amanheceu e ninguém se deu conta. Era outro ano. Onde estamos nós, hoje? Alguns já até morreram.

Fiz as contas. Estou perto das cinquenta viradas passadas. Ninguém sabe quantas mais virão. Quantas chuvas vou ver cair, os fogos cada vez mais silenciosos, as cadelas e suas crias, os amigos mais duradouros, as mesmas músicas de sempre, “lembra desta?”, as decisões adiadas para a semana seguinte, boas e más notícias, os passos trôpegos adentrando mais um ano. Guardar as luzes coloridas, jogar fora as garrafas, devolver as caixas de som, varrer a varanda, voltar o tapete de bem-vindos para o lugar, na entrada da casa.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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