Estranho verbete

Um ateu busca um verbo no dicionário e espanta-se com as coincidências entre a vida e a morte
Ilustração: Eduardo Mussi
25/11/2024

Considero improvável a existência de um vivente mais cético do que eu. A palavra crer, no sentido místico, não consta do meu vocabulário. Sou completamente ateu, não perco meu tempo com religiões, fantasmas, aparições, divirto-me com quem tem medo de almas de outro mundo. Bruxas, adoro bruxas, são apenas personagens de contos infantis. Ignoro vampiros, demônios, mulas-sem-cabeça, fadas, sacis, tudo que fuja de explicações razoáveis. Essa coisa de energia, bons fluidos, me diverte. Se alguém diz que vai vibrar por mim, fico bem próximo de um ataque de riso. Sou adepto da Ciência. Acredito que a terra é redonda, mantenho a caderneta de vacinação em dia, sei que o mal feito à Natureza é irreversível, o aquecimento global transformará nossas vidas literalmente em um inferno — uso a palavra metaforicamente, no futuro.

Cidadão pacato, passo a maior parte do meu tempo em meu escritório escrevendo, e usufruindo da benesse do ar-condicionado, gosto de estar em ambientes gelados.

Há alguns anos, quase ia acrescentando “atrás”, incrível como os erros acabam sendo incorporados em nossa rotina, estava trabalhando um texto. Até aí nada de novo. Geralmente é como gasto o tempo, tentando dizer as coisas por escrito. Talvez por medo de me esquecer das importâncias que observo em meu entorno. Na época, ainda não existiam os dicionários online. E quem escreve, sabe, não somos capazes de enfileirar muitos parágrafos sem interrupções. Toda hora buscamos acepções, regências, conferimos a grafia dos vocábulos. Enfim, somos eternos devedores do Aurélio Buarque de Holanda, Antonio Houaiss, Caldas Aulete, entre outros dicionaristas. De minha parte, talvez por minhas origens alagoanas, sempre usei o Aurélio. Um trambolho enorme, capa dura, cheio de páginas, difícil de manusear. Diferentemente de hoje, quando com um clique encontramos nossas provas de ignorância no computador.

Pois bem, estava eu em meu canto, redigindo um conto, quando embatuquei com uma expressão. Não tinha muita certeza de como grafaria a danada. Com dois “s”, “ç”, estupidez total. Peguei o tijolão sobre a mesa e comecei a procurar. Serviço lento, pesado, interrupção do pensamento que, no ato criativo, ia fluindo tão bem e corria, naquele momento, risco de se perder. Sem a menor razão, reclamei com meu pai, que tinha falecido há pouco tempo:

— Você bem que podia me ajudar. Está enterrado sem fazer nada, só no bem bom, esticadinho sob a terra, sempre soube escrever melhor do que eu, não custava nada me assoprar como se soletra essa porcaria.

Eu estava mesmo danado da vida, muito enfezado folheando aquele livro enorme e cansativo. Em determinada página, com o indicador fui descendo, descendo, encontrei!

O Aurélio, como sempre, me serviu direitinho. Estava lá o verbo com dois “s”, várias acepções e para ajudar um verbete. Distraído fui lendo, buscando entender se o uso daquele termo seria a escolha mais adequada. No final o autor: Ricardo Ramos.

O susto foi enorme. Arremessei o livro longe, com os cabelos arrepiados, e imediatamente pedi desculpas:

— Estava brincando, pai, não me leve a mal.

Nunca mais ousei lidar com tais coisas. Continuo completamente descrente, mas por via das dúvidas…

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho