Para parar

Uma reunião se transforma em um clássico exemplo das batalhas das mulheres contra o machismo escancarado de homens brancos, cis, héteros
Ilustração: Bruno Schier
14/11/2024

A cena é típica. Reunião. Sou a única mulher. E, curiosamente, especialista no assunto sobre o qual falo. Tratei disso no meu mestrado, no meu doutorado e nos meus dois pós-doutorados. Consegui ser interrompida em todas as frases que disse, por todos os homens presentes. Toda. Frase. Cada uma delas. E nem dá para fazer a piada de que deve ser algum tipo de recorde. Não é. É o dia a dia de todas nós.

Chego em casa exausta.

Exausta não do longo dia de trabalho. Exausta da humanidade.

Não, mentira. Exausta da parcela masculina hétero cis branca da humanidade. O resto de nós não é nenhuma maravilha, mas ainda tem alguma noção.

Então, para conseguir continuar nesse mundo e porque quem faz sentido é soldado, boto para tocar um homem branco hétero cis e, pior, inglês. Hugh Laurie pode até ser mais conhecido por seu papel de um médico brilhante (ficção) e arrogante (verossímil) mas, para mim, ele é músico.

Não gosto de médicos. Nem os de ficção, nem os inevitáveis da vida real. Não gosto especialmente dos médicos brancos héteros cis.

Nina aprova o Hugh Laurie e deita no meu colo. Ela sabe o que é necessário para que eu não perca o réu primário.

Finjo que sou um homem branco hétero cis — ou minha mãe — e pego uma dose de uísque.

Volta e meia sou acusada de ser parecida com a minha mãe.

Secretamente suspeito que minha mãe era trans. Ela tomava uísque e jogava sinuca. Eu tento, mas jogo muito mal.

A cabeça ainda está naquela mesa. Os machotudo me interrompendo e eu tentando manter a educação. Se arrependimento matasse. Eu devia era ter mandado todos para onde acho que eles nunca deveriam ter saído de.

Que raiva.

É quase meia-noite, Nina, não dá pra sair agora. Sim, eu sei que você é um cachorro, mas você não engana ninguém como cão de guarda. Maior focinho de fofinha. A gente vai ser comida viva.

Mais uma para conta desse dasein mulher que nos enlouquece. Não, não dá para dar uma volta de noite. O medo masculino é perder o celular. O medo feminino é ser assassinada.

Que cansaço do mundo.

Procurando outra coisa, esbarro de novo na mensagem que me conta que R., linda, maravilhosa, queridíssima e namorada de R. gostou do meu drops. Os dois gostaram. O coração enche de alegria. São pessoas importantes para mim. Às vezes tem uns héteros cis que prestam. É raro, mas acontece.

Minha melhor amiga está em Bogotá, o que torna um pouco difícil falar para o que você está fazendo e vamos beber pelamordedeus. Venha correndo com o vinho de emergência.

Sinto falta do acento em para. Pára é muito diferente de para. Meu deus, estou velha o suficiente para reclamar de reformas ortográficas. Só me falta agora ter hábitos de macho velho. Como jogar sinuca ou tomar uísque.

Não, pera.

Não, para.

Não, pára.

Aff.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho