Tarde em Itapuã

A viagem ao lado do pai para visitar Vinicius de Moraes e a descoberta do inusitado nome do cachorro do Poetinha
Ilustração: Marcelo Frazão
11/11/2024

Às vezes a memória recua um tanto exagerada, percorre caminhos extemporâneos, remete a períodos que nos surpreendem pela distância. Retrocede assim desavisada, sem ter por quê, quando reparamos nos enxergamos em um passado remoto, encontrando pessoas que já partiram, exercício repentino de saudade.

Era sábado, amanhã seria domingo, e a vida viria em ondas como o mar, afinal as férias em Salvador precisavam ser curtidas. Sol, calor, bermudas, camisetas, nós dois de alpercatas, segundo o idioma alagoano de meu pai. Início da década de setenta, eu rapazola, receber um convite do velho para ir visitar Vinicius de Moraes foi uma dupla alegria. Pela deferência do convite, papai nunca foi muito de carregar os filhos sob as asas, poder ver de perto um de meus ídolos. Na época eu sabia muita coisa do poeta de cor e era, como sou até hoje, fã dele.

Pegamos o carro e fomos beirando o mar. Saímos da casa de minha tia na praia de Pituba e tomamos a orla marítima. Gostoso ver todo aquele exagero de natureza ali disponível, nós desacostumados, vindos do cinza de São Paulo. No toca fitas TKR, cassete gravado por mim, Aero Willys equipado da família, a voz de Gil cantando serviu de legenda para o que víamos:

Na terra em que o mar não bate
Não bate o meu coração
O mar onde o céu flutua
Onde morre o sol e a lua
E acaba o caminho do chão

Na época chegava-se aos lugares parando-se o veículo e perguntando. Não havia ainda a comodidade dos aplicativos. Segundo informação passada, não teríamos dificuldade. Quando estivéssemos na vila de Itapuã, seria só perguntar pela casa do Poetinha. Todo mundo sabia onde ele morava.

Paramos na frente do imóvel e tocamos a campainha. Um latido grave e forte imediatamente se elevou, e um cachorro grande, peludo e gordo veio correndo desde os fundos do quintal. Emocionado, vi Vinicius vir caminhando lentamente e gritando:

— Quieto, Graciliano, passa!

Quando chegou perto, e abraçou meu pai, sorrindo, ouviu dele:

— Filho de uma puta, você botou o nome de meu pai no cão!

Ele gargalhou.

— Mas é um São Bernardo. Haveria melhor solução?

E eu aqui recuado, voltando tanto no tempo, não posso deixar de pensar que a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho