Buracos na terra

Uma ponte de amor e lembranças entre mudas de plantas numa encosta, uma autora coreana e a areia
Ilustração: FP Rodrigues
07/11/2024

Eu acho que existem algumas coisas que movem montanhas. O ódio, por exemplo. O ódio move montanhas, constrói túneis e instala o bondinho no topo e ainda cobra pedágio.

O amor também. O amor até refloresta uma montanha inteirinha.

Quando eu era criança, meus pais compraram um terreno que apelidamos de sítio. Era uma terra meio devastada. Minha mãe plantou mudas, uma a uma, com as mãos. Eu ia andando do lado dela com um carrinho de mão. Ela fazia um buraco na terra, eu entregava uma muda, ela plantava. Dava cinco passos, fazia um buraco na terra, eu entregava outra muda, ela plantava. E foi assim até terminar o barranco. Reflorestou.

Não tenho certeza se pelo ódio, pelo amor ou por ambos.

Eram plantas frutíferas. Tinha laranja, limão e mais um monte de coisa de que não lembro.

Por amor a outros, já construí pontes. Por amor próprio, destruí outras.

Eu me movo também pela vergonha. E foi assim que, de uma hora para a outra, comprei três livros da Han Kang, vencedora do Nobel. Não tinha lido. Tinha ouvido falar, mas não lido. E, envergonho-me profundamente, sequer mesmo me interessado.

Não acho que um Nobel seja sinônimo de qualidade literária, não. Sou daquelas, inclusive, que se irritaram com o prêmio de 2016 entregue ao músico Bob Dylan. Um músico fantástico, veja bem. Não escreve literatura. Sim, eu ainda acho que essa separação faz algum sentido. Sou velha.

Concordando ou não, é meio vergonhoso não ter lido nada de alguém com esse tipo de destaque. Ou não, sei lá. Não tenho muitas certezas. De toda forma, comprei os livros.

O mais badalado, A vegetariana, achei chatíssimo. O Atos humanos é… ok. Mas O livro branco me pegou.

Página 97, Areia:

E ela muitas vezes esqueceu
que seu corpo (o de todos nós) é uma casa de areia

que se esfarelou e se esfarela
que vai escorrendo entre os dedos.

Talvez eu esteja em uma fase mais próxima da poesia do que da prosa. Será?

Faz tempo que não caminho sobre a areia. Optei por essa vida louca paulistana e só volto ao Rio de Janeiro por desgosto ou obrigação. Sim, eu sei que existe areia em outros lugares.

Fecho os olhos. Consigo sentir o chão instável e quente. A textura da areia. Não necessariamente gosto.

Gosto da água. Gosto do mar. A areia é apenas um obstáculo entre a cidade e o mar. Um tipo muito específico de sala de descompressão.

Nina ainda não conhece a praia ou o mar. Preciso resolver essa questão.

Guardo o livro. É a deixa que Nina precisa. É o sinal internacional para “colo disponível”. Pula em cima de mim como se fosse um filhotinho de gato. Acha que pesa 200 gramas.

Fechamos os olhos.

Ela e eu.

Ela, na grama.

Eu, na areia.

Mentira.

Eu, na terra da minha infância.

Plantando mudas.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho