Nem uma nesga de luz nas ruínas da alma

Alguns excelentes escritores, mesmo com a solidez da escrita intrínseca em cada ínfima palavra, estão alijados, esquecidos, longe do reconhecimento
01/06/2000

Alguns excelentes escritores, mesmo com a solidez da escrita intrínseca em cada ínfima palavra, estão alijados, esquecidos, longe do reconhecimento. Outros são vilipendiados e o esquecimento lhes arde até o último momento. Poucos são ressuscitados e elevados ao céu. Mas mesmo longe do público ou próximo de poucos leitores, eles continuam a produção — até mesmo porque não lhes resta outra saída. Esse parece ser o caso de Raimundo Carrero, um dos mais originais e importantes escritores contemporâneos brasileiros, que produz uma intensa e extensa obra longe dos holofotes que, muitas vezes, brilham sobre pessoas indevidas e relegam tantas outras à escuridão. Enquanto muitos escritores ainda buscam escrever o grande romance urbano brasileiro — seja lá o que isso signifique para eles —, assim como fez Guimarães Rosa, com Grandes Sertão Veredas, para o regionalismo (universal, é claro) — Fausto Wolff talvez tenha se aproximado do grande romance urbano com À Mão Esquerda —, Raimundo Carrero segue um trilho próprio e único, sem modismos, alheio ao lugar-comum muitas vezes impregnado na literatura brasileira.

Ao lado de João Gilberto Noll (A Céu Aberto) e Bernardo Carvalho (As Iniciais), Carrero busca a originalidade da escrita, sem perder-se em experimentalismos pífios e inócuos. E isso desde o seu livro de estréia: A História de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão, culminando em seu mais importante romance: Somos Pedras que se Consomem (Iluminuras, 1995). Mesmo tendo nascido em Salgueiro, Pernambuco e, assim, localizar-se como um escritor nordestino, a literatura de Carrero foge, como o sertanejo das pestes e fome, de um regionalismo já um tanto gasto e embrenha-se pela neurose urbana, principalmente de Recife. Mais do que a neurose urbana, o escritor perscruta a neurose do homem e de sua alma. Neurose, frustrações, medo, o grotesco, e principalmente o maligno — tudo na dose certa — compõem o  excelente As Sombrias Ruínas da Alma (Iluminuras, 185 págs.), ganhador do Jabuti na categoria contos.

É a confrontação do mal com ele mesmo, num estado de catarse que leva ao medo, decepção e frustração. Não há espaço para momentos tranqüilos e felizes, pois as linhas são bem ocupadas pela dor que vai desfiando cada músculo dos personagens. A viagem durante a leitura flui com muita rapidez, mas é como se estivéssemos em uma montanha-russa — onde o início e o fim trazem a paz, mas o meio da viagem revela o pavor da altura, da velocidade, ou ainda, a emoção que o medo nos finca na pele. Mas a turbulência da viagem pelas ruínas da alma, almas nossas e de todos, empreendida por Carrero é um vertiginoso périplo por um texto construído e reconstruído sobre todos os fantasmas que atormentam a nossa existência e culminam no medo, que é o acúmulo de todos os nossos sentimentos.

Estão ali, o receio da morte, da solidão, do desprezo, do desespero, do sexo, enfim da vida. O homem que constrói o caixão para os dois filhos tem medo da morte, provocada pela fome, mas não lhe dá muita importância, pois já não mais consegue fugir dela. Outros personagens vêem na morte a dor e o medo e isso lhes atrapalha a paz que lhes poderá trazer o último fiapo de ar entrando pelas narinas: […] Judite sempre disse quero morrer falando, cantando, sorrindo, dançando, nunca penso em morte agoniosa, o povo se lamentando perto de mim (pág. 89), no texto As Armadilhas do Corpo.

A última parte do livro, As Sombrias Ruínas da Alma, funciona como uma espécie de resumo da obra, porque abarca todos os sentimentos expressados pelo autor desde o início, principalmente o grotesco. O encontro num bar entre dois amigos, Sebastião e Daniel, é o encontro entre os medos que permeiam a existência: a lenta decomposição do corpo — expressada por meio de rugas e da flacidez da carne —, que irremediavelmente leva à morte. Beatriz, antiga amante de ambos, junta-se aos dois amigos. Em seguida chega Samuel que também fora amante de Beatriz. Numa conversa insana, eles vão desvendando e desnudando todos os fantasmas estrangulados na garganta e dos quais não conseguem se libertar. Sebastião tem a face desfigurada graças à raiva provocada pela palavras de Daniel. Beatriz quer ver o rosto de Sebastião, mas este o esconde com uma máscara. Os três querem casar com Beatriz, mas ela não quer casar com nenhum deles. É nesse labirinto de desejos e decepções que vemos o quão fútil e inútil é a fuga da morte na sua iminência de chegar todos os dias.

Ao contrário de Somos Pedras que se Consomem — em que o sexo, incestos, traições, masoquismo, ternura, amor, e todos os sentimentos que envolvem a solidão de corpos entregues ao prazer, não deixam espaço para a esperança —, em As Sombrias Ruínas da Alma parece emergir uma nesga de esperança para a vida. Mas é um fiapo tão ínfimo que se dilui entre o emaranhado de tristezas que forma esse labirinto sem saída que compõe a obra de Carrero. É uma breve passagem pelo purgatório vindo do inferno, mas como os olhos já voltados para as labaredas, porque é ali o universo onde todos os personagens de Raimundo Carrero passeiam com desenvoltura e assanhamento, sem a mínima intenção de arrependimento. Para eles, o céu é um lugar risível, impossível e muito distante.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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