Em umas tantas epígrafes que povoam Aspades, ETs etc. (Record, 238 pags.) — segundo romance do escritort pernanbucano fernando Monteiro, 49 anos —, o pessimista filósofo E.M. Cioran diz que “só nos interessa o que um escritor calou, o que poderia ser dito, suas profundiades mudas”. E é pelos labirintos de silencio ora incomodos, ora sublimes, que monteiro traça uma sólida, mas ainda pouco conhecida, carreira literária. Depois de A cabeça no fundo do entulho (Record, 1999), o polêmico e, às vezes, contraditorio Monteiro surge agora com um livro capaz de ludibriar os mais incautos, extasiar os mais exigentes e provocar a ira dos adptos de “leituras fáceis”. Aspades… é, até mesmo sob o olhar mais cético, linguagem de inegável qualidade. Ou seja: literatura em estado puro. “Literatura é linguagem”, defende o autor, ao mesmo tempo em que diz não saber o que é literatura. Contradições de Monteiro: rapudia qualquer espécie de regionalismo, mas reverencia toda a obra de Guimarães Rosa. Ama o cinema, considera a literatura brasileira atual (não de modo absoluto) rasa, rala e reles, é arredio a qualquer círculo literario… Mas enquanto tem a vida repleta de paradoxos, Monteiro consegue — com o distanciamento que lhe é pelicular — construir uma obra com força incomum na literatura atual. Aspades é a tenue linha entre ficção e realidade. Influencia de Borges ele nega. É a história do cineasta Vasco Aspades: tipo requintado, fino e atormentado, e seu eterno périplo pelo mundo das imagens e das palavras. o Mesmo caminho traçado por Monteiro, um tipo requintado e fino manuseio das palavras. Conheça um pouco mais dos paradoxos, vida e obra de Fernando Monteiro, nessa entrevista concedida por e-mail ao Rascunho:
• A produção literária do senhor parece andar na contramão. Primeiro, Aspades… foi publicado em Portugal. Depois, o sr. ficou conhecido no Brasil com A Cabeça…, editado no ano passado. Agora chega Aspades… às livrarias brasileiras. Isso de alguma maneira tem importância para o leitor? E quais são as diferenças entre os dois livros?
Veja, do meu ponto de vista, como escritor, essa “contramão” é menos minha do que do caminho tortuoso que infelizmente se apresenta diante de um autor novo, no Brasil. Isto é, quando eu terminei o Aspades, eu encaminhei o original para algumas editoras nacionais. Tive resposta de duas das grandes — e resposta de uma das médias e pequenas. Isso foi ao longo de 1996, quando resolvi remeter o livro para uma grande editora portuguesa (Campo das Letras Editores), que havia lançado dois romances de Rubem Fonseca, naquele ano. Passado um tempo, tive a resposta positiva de Portugal — e o livro saiu lá, em primeira edição. Isso chamou a atenção da revista BRAVO (que vem sendo um termômetro cultural dos últimos dois anos e meio), o que por sua vez chamou a atenção da Record, pelos olhos agudos de Luciana Villas-Bôas. Ela propôs contratar três livros meus, começando pela publicação de um inédito (A Cabeça no Fundo do Entulho, lançado em julho do ano passado) e agora chegando à publicação do Aspades e do ensaio biográfico T. E. Lawrence: morte num ano de sombra.
• E por falar no ensaio biográfico T. E. Lawrence (Morte num Ano de Sombra), por que esse interesse pela vida do aventureiro inglês Lawrence da Arábia?
Lawrence é um verdadeiro (e insondável) enigma humano. Basta ler Os Sete Pilares para se ter a perfeita idéia do que ele foi: um daqueles raríssimos homens que tudo podiam — como artistas, generais, papas ou assassinos etc. Um verdadeiro gênio (palavra gasta!) — e um homem extremamente perigoso. Ele é o “tipo” — do recorte chestertoniano — cuja exemplaridade (e cujo mistério) para mim substitui a de Lampião e outros “heróis” sem mistério, que o sentimento (equivocado) de “nacionalidade” e “região” etc., induz a colocar no panteão de Angicos e outros grotões. Recomendo, especialmente, a leitura dessa tradução —irretocável — de 1938, que é a que está sendo posta ao alcance, de novo, do leitor brasileiro (assinada por um certo “C. Machado”), sessenta e dois anos depois do audacioso lançamento da Cia. Brasil Editora, apenas três anos após o aparecimento da primeira edição pública inglesa, em 1935.
• Tanto em Aspades… como em A Cabeça…, o sr. aproxima muito o cinema da literatura. Qual a relação entre essas duas artes?
Eu pertenço a uma geração que foi muito marcada pela emergência do “cinema de autor”, a partir do neo-realismo etc. Nasci em 1949, e minha adolescência foi dividida entre a biblioteca e o cinema de bairro exibindo pelo menos dois filmes por semana (às vezes, três). Hoje percebo o influxo de força, de esperança num novo humanismo, quando intelectuais e artistas voltavam a freqüentar os lugares da “geração perdida”, as cidades bombardeadas e sendo reconstruídas etc. Foi essa a chave da formação de quem nasceu no meio do século — e sei que é difícil, para a atual geração dos “multiplexs” e das editoras que sugerem temas mercadologicamente “interessantes” para os seus escritores, entender que o pessoal da minha geração teve o abençoado céu protetor que ainda contemplava antigos escritores trabalhando na mais feroz solidão criadora (tipo Malcolm Lowry) e via surgirem os cineastas interrogando a vida doce (e as amargas vidas), os acossados e os incompreendidos. Isso foi muito antes da indústria do cinema cair — sem exorcismo — como possessa da máquina de calcular e da idiotice dos filmes de verão para adolescentes (vitalícios). Resumindo: garoto, eu via filmes “sérios” — Louis Malle, Nicholas Ray, Welles, o free cinema inglês dos anos sessenta etc. — e lia livros que nem de longe tentavam influenciar nenhum mendigo de auto-ajuda. Os autores desses livros passavam uma visão de mundo, pertenciam a uma ordem de sabedoria perdida: a do autor que não sabia nada de específico, não estava querendo apenas divertir e nem simulava saber a “verdade” sobre um determinado acontecimento histórico ou vivido. Era mais ou menos a atitude do “cineasta-autor”, construindo a sua narrativa deslocada do eixo comercial de então — e rompendo as barreiras do divertimento, levando a pensar (e sentir) tanto quando os romancistas. O cinema parecia, então, a caneta provida de um olho “imediato” para tudo (e foi assim que atraiu escritores como Pasolini, ou formou consciências “literárias” em cineastas como Antonioni)… De modo que, para mim, é natural que o cinema e a literatura quase se interpenetrem, na narrativa — ainda mais porque acho que uma boa parte da ficção atual não entendeu o que a tela fez pelo olho, pela percepção e até pelo ouvido.
• Há um limite para a criação literária, já que o sr. cita em A Cabeça… a incapacidade da literatura de discorrer sobre o amor?
O amor ou vê ou se faz (o que é melhor). Parece que não se pode “descrevê-lo” — verdadeiramente — com palavras abstratas, que falham em passar a curva interna de uma coxa (com seu calor) para a mente que não pode sentir o leve salgado da pele nesse interior de concha e sombra (vê? Já começou o artifício das palavras — e “concha” e “sombra” já não transmitem nem uma sombra daquela sombra). A “incapacidade” que eu cito, no entanto, naquele capítulo de A Cabeça no Fundo do Entulho serve, ali, antes de mais nada para “distanciar” o leitor, lembrá-lo do artificio literário que tenta imitar a vida. Estou o tempo todo dizendo — como Magritte (“isto não é um cachimbo”): Isto é literatura. Mas o cinema ainda tem mais limitações do que a literatura, é claro. Esta, tem poucas, em comparação — mas algumas dessas limitações ainda permanecem no limite do explorado por Joyce e outros, no que diz respeito à narrativa.
• A escrita do sr. apresenta-se cosmopolita e para o leitor mais incauto pode até ser considerada “difícil”. O sr. acredita que a linguagem está acima da trama?
Literatura é linguagem. E agora, mais do que nunca, estamos todos quase obrigados a escrever sobre a escrita — se aceitarmos que todas as “histórias” parece que já foram contadas (e, em alguns casos, contadas de forma definitiva: quem escreveria sobre um adultério melhor do que Flaubert e Tolstoi? )… Claro que há ainda o que contar — pois a vida segue com mais imaginação do que a literatura — mas o edifício da literatura “pesa” demais nos ombros, oprime a visão, a capacidade criativa e inovadora das gerações que encontram Moby Dick já escrito. Ainda assim, é nosso dever continuar na perseguição da baleia branca…
• Em seus livros não existe o mínimo resquício de regionalismo, tão comum em escritores do Nordeste. Por quê?
Deve ser alguma tara peculiar que carrego talvez como um estigma. Nunca dei a minha cota de “Lampião/Lampiões” à literatura nordestina, aumentando o acervo dessa espécie de Sicília fechada — ou “pátria basca” — que é a minha região. Mas, há muito folclore em torno disso… e são alguns de nós (os nordestinos), nós próprios os que vestimos o gibão ou a roupa branca de algodãozinho (griffe Suassuna), para corresponder a qualquer coisa que se imagina somos etc. O “folclore” é uma boa almofada para nossas bundas orgulhosas de um bandido de terceira como Lampião. Eu conheço o Nordeste bem, nasci aqui, filmei a região — mas meu olhar não se detém especialmente no “torrão”, para a facilitação das “coisas” ou para tentar corresponder a alguns estereótipos formados na cabeça dos outros. Gosto de olhar (“tudo começa com olhar alguma coisa”, diz Antonioni), em torno e mais longe, e de viajar e ver o mundo. O que eu escrevo não é apátrida, mas também não se fecha numa auto-imagem, sintomática, na qual eu me veja como o “nordestino” das proezas de João Grilo e outros. Gosto dos cantadores, mas gosto também do Lazarillo de Tormes — e não posso (nem devo) esconder o que habita em meu espírito, seja sofisticado ou primitivo. Escrevo com base na minha visão de mundo — e se meu endereço residencial é no Recife, isso só deveria ser importante para o carteiro.
• Mas mesmo “desprezando” o regionalismo, o sr. considera Guimarães Rosa um dos maiores escritores da literatura universal. E isso é um grande paradoxo. Como o sr. o explica?
Acho que Guimarães Rosa pertence àquele seleto clube literário dos “criadores de universos particulares”. Nada mais sofisticado do que o modo como ele operou a transfiguração do sertão físico — das Minas — em linguagem, isto é, em literatura. Seu sertão, aliás, é tão mineiro quanto sumeriano ou grego… porque ele queria resgatar um universo particularíssimo (mais ou menos como fez Isaac Bashevis Singer em relação ao mundo judeu polonês contido no velho iídiche). Por isso, minha admiração — nada contraditória — por Rosa, e minha antipatia pela visão rasteira dos regionalistas ainda situados, artisticamente, em 1930.
• Quais são as suas influências literárias? O sr. concorda com alguns críticos que vêem em seu texto forte influência de Joyce e Borges?
Gosto do Livro dos Mortos (egípcio — não do tibetano) e não gosto muito dos portais ilusórios de Borges. Gosto de Hawthorne, Melville e Conrad e de muitos escritores dos quais o mar se apossou, entranhando a sua voz estranha nas suas vozes literárias (a partir da vida de alguns deles). Gosto de uma obra-prima quase esquecida (e que a Record está relançando, neste mês) — Os Sete Pilares da Sabedoria, de T. E. Lawrence. Gosto muito dos italianos, poetas e prosadores (certamente em virtude da vivência na Itália): Ungaretti, Montale e Quasímodo, Italo Svevo, Cesare Pavese, Carlo Emílio Gadda, Elio Vittorini e Lampedusa. Gosto de Italo Calvino, de J. D. Salinger, Paul Bowles e de escritores “laterais” como Emeric Pressburger (se algum leitor, ou leitora, de “Rascunho” provar que leu um livro de E.P, eu mando uma lata de goiabada Palmeiron, de Arcoverde, para ele ou para ela. Juro). Nunca gostei do chamado “realismo mágico”. Dos escritores latino-americanos associados a essa “escola” (inventada na cabeça de franceses tolos), só Cortázar, Juan Rulfo, Carpentier e Lezama Lima tinham verdadeiro talento. Gosto muito de Machado de Assis — nunca se pára de aprender com o espírito enxuto desse bruxo-fundador da nossa literatura! — e de Raul Pompéia e Lucio Cardoso. E gosto dos autores cinematográficos — que você não incluiu na pergunta.
• Os seus textos são, ou parecem, extremamente elaborados. Como é o seu processo de criação?
Dão essa impressão, eu concordo — e todo mundo me aconselha a “reforçar” isso e até criar alguma elaborada mentira, cheia de etapas complicadas e trabalho insano e tudo o mais. Que nada. Eu escrevo aqui, num bairro de praia do Recife, tentando não ouvir, nos domingos, o som onipresente das TVs ligadas no “Topa Tudo por Dinheiro”. Quando estou sentado diante do micro (uma grande ajuda para os escritores), de vez em quando paro e saio para comprar cigarros e ver algumas as moças que passam, ou fazem compras no Shopping próximo, caminhando com a distração e o alheamento, maravilhosos, da juventude. Depois, volto — e continuo a escrever. Em três ou quatro meses dessa rotina “extenuante”, um livro está pronto. Essa é a verdade. Ainda não me convenci a “inventar” que eu me isolo no sertão do Pajeú das Flores para escrever “alta literatura”, alimentando-me apenas de sementes de abóbora e leite de soja…
• Em Aspades… a linha entre ficção e realidade é muito tênue e há um jogo complexo a cada página, assim como fazia Borges. O autor deve ter total domínio sobre o livro ou corre o risco de perder-se pelo caminho. Como o sr. consegue dosar ficção e realidade?
O humor (ou pretenso humor) da resposta anterior não deve elidir o fato de que um livro como o Aspades deu (e dará, sempre) um trabalho desgraçado. A sua pergunta, aliás, vai no ponto focal de tudo: um livro assim teria tudo para se perder, ficar chato e não chegar a lugar nenhum (real ou imaginário). A sua pergunta é a de um leitor arguto, de olho atento para as estruturas. Desde o começo, no Aspades, eu percebi que o “projeto” só se salvaria se: primeiro, eu acreditasse, piamente, na existência do personagem Vasco Aspades do Carmo como uma pessoa de carne e osso, que poderia, a qualquer momento, desembarcar no aeroporto e se hospedar no meu pequeno apartamento; segundo, se eu parametrasse a narrativa pretendida com os fatos reais da minha própria vida, fazendo disso uma espécie de grade básica (de realidade vivida); e, terceiro, se eu nunca perdesse o insigth primeiro do livro: criar alguma coisa alucinantemente “real”, porque se tornaria algo apreciável por si próprio (como se aprecia o mundo paralelo e abstrato dos jogos) etc.
• Em uma das tantas epígrafes utilizadas em Aspades, o sr. cita o cineasta Robert Bresson, que diz: “O cinema é movimento interior”. O que é a literatura?
Não sei. Sinceramente, não sei (principalmente numa relação com a frase, tão vertical, de Robert Bresson, sobre o cinema). E tenho receio de enfrentar uma conceituação dessas, no fundo da mente, e isso vir a contribuir com a já inevitável “perda da inocência” literária — aquela que deveríamos preservar o mais possível — como se estivéssemos, cada um de nós, a cada vez, escrevendo o primeiro livro, a primeira “caça à baleia”, sem saber bem o que fazer com o arpão, e contra qual dos grandes peixes (que não são peixes). “O escritor trabalha com o que não sabe — para ficar sabendo”. Alguém disse isso, mas não me lembro quem foi (neste momento).
• Em outra epígrafe, o pessimista filósofo E. M. Cioran diz que “só nos interessa o que um escritor calou, o que poderia ser dito, suas profundidades mudas”. O sr. acredita que as grandes obras, tanto na literatura como no cinema, são feitas de silêncios?
Acredito piamente nisso. E em homenagem à inteligência das perguntas de “Rascunho”, cito, em conexão com esse tema, três frases de Hans Kudszus: “A não existência de cultura é muda, a meia cultura é loquaz, e a cultura, calada.” Outra: “Escritor: ofertar à opinião pública o próprio silêncio”. E uma terceira: “O mais difícil é traduzir de uma língua para outra o silêncio”.
• O sr. continua considerando a atual literatura brasileira “rasa, rala e reles”? Por quê?
Não de um modo absoluto (claro), mas, relativizando o que se nos oferece neste momento (e desde há alguns anos), sim, continuo com essa opinião… e até fortalecida pelo recente aparecimento de um certo tendência para o “piadismo” que está aumentando em alguns autores cujo mundo interior parece ir se diluindo como uísque com gelo. Temos duas “maldições” lançadas, aparentemente, contra a literatura do país: a primeira é “serás sempre sociológica e/ou política”; a segunda é “terás a maior das dificuldades em criar personagens de carne e osso, que respirem e precisem ir ao banheiro”. Outra coisa: não se faz literatura sem expor o próprio pescoço. E, no momento, nossos pescoços são valiosos troços, de budas ditosos.
• Qual a sua opinião sobre a sua geração de escritores (sei que o sr. não gosta de tal agrupamento, mas o considero, aqui, imprescindível) como Bernardo Carvalho, Nelson de Oliveira, Marçal Aquino, Antonio Carlos Viana, entre outros?
Gostei muito do livro de contos de Nelson de Oliveira, “Naquela época tínhamos um gato”. Acho Bernardo Carvalho tendendo para um “abstracionismo” que precisaria de uma tessitura mais “carnal”, mas isso é uma questão de gosto — e, em todo caso, não impede que eu reconheça a alta qualidade da sua escrita. A Marçal Aquino e a Antonio Carlos Viana (conheço mais os trabalhos do segundo), seria necessário acrescentar alguns gaúchos, entre os quais Tabajara Ruas e Michel Laub.
• Hoje, assistimos a uma espécie de segmentação ou pasteurização da literatura, com as coletâneas sobre pecados e thriller policiais. Como isso contribui para conquistar novos leitores?
Se o escritor não diz ao que veio, o editor aparece com mil gracinhas. Ou seja, todo cuidado é pouco, já dizia o sábio chinês Nun-Chi-Chabe. E quanto a “conquistar leitores”, depende de qual tipo (de leitor) e a que preço (para o escritor), naturalmente.
• Apesar do surgimento de várias revistas culturais nos últimos anos (Bravo, Cult, República, Caros Amigos, Palavra, entre outras) parece que o Brasil sofre de uma estagnação cultural, principalmente na literatura. O que pode ser feito para mudar essa situação?
Temos que lamentar — isso me parece óbvio — que, no momento em que surgiram essas revistas e também programas sobre literatura na TV Cultura, TV SENAC e outras, a cultura brasileira esteja no plano mais deprimido dos últimos vinte anos, na minha opinião. Acho que ainda tem a ver um pouco com o engodo da “grande literatura que estaria nas gavetas abertas” depois da abertura. E também tem a ver com gerações que deixaram de ler os clássicos para ouvir Fernando Pessoa na voz de Bethânia. O que pode ser feito? Mais “Rascunhos”!, mais BRAVOS!, “mais tudo!” — como dizia Tim Maia.
• Com o livro Ecométrica (Massao Ohno Editor, 1983), o sr. ganhou o Prêmio Nacional de Poesia da UBE/RJ. Hoje, o sr. abdicou da poesia em favor da prosa?
Não, absolutamente. Ainda este ano, sai — em Portugal! — um poema longo, que escrevi recentemente. Será publicado pela Editora Vega e o título é O Jarro Alto das Montanhas. Mas, infelizmente, a maioria dos editores cultiva a mais grosseira indiferença pela poesia e é isso (e não a indiferença dos leitores) que a relega à “desimportância” atual, quando nada – absolutamente nada — pode ser mais importante do que ela, a poesia nos seus andrajos de gata borralheira que espera (ainda) a meia-noite calada dos príncipes-leitores…
• Críticos, como Wilson Martins, defendem o ressurgimento do conto brasileiro. O que o sr. pensa a respeito desse gênero tão vilipendiado atualmente, depois do boom da década de 70?
Naquele “boom”, acho que havia uma espécie de atração, meio baixa, pelo que se podia contar da forma mais “original” — como se os contistas fossem artistas dos entreatos no circo da literatura brasileira. Por esse lado, foi bom acabar — e eu não lamento (somente por esse lado) o “boom” acabado num anticlímax. Por outro lado, no lugar do conto — e como seu desenvolvimento natural — não apareceram romances e romancistas de peso. E isso ainda é pior. De qualquer modo, há um certo bizantismo, ou falsa questão, nisso. Escreve-se contos quando se trata de escrever algo contido num conto (tautologia pura)… e, quando não, ora, então não se escreve contos, mas romances e novelas e coisas híbridas e objetos não-identificados da literatura. Neste momento, parece que estamos escrevendo muito pouco — qualitativamente bom — de quaisquer dessas modalidades de narrativa, conforme o conselheiro Acácio concluiria, os polegares metidos na casaca.