Quando eu tinha uns treze anos, meu pai se mudou para uma casa com quintal. Até então, só tínhamos vivido em apartamentos. Meus irmãos e eu éramos vítimas dessa mudança, assim, em reparação, exigimos a satisfação de nosso mais urgente desejo: cachorros!
Meu pai conseguiu uma linda cachorrinha quase de raça, meio Pinscher, meio Fox Paulistinha, a quem demos o nome de Belle. Não conhecíamos nada de saúde animal nem de vacinas, e em poucos meses Belle morreu de cinomose, com espasmos e tremores, aos quais assistimos impotentes e aterrorizados. Chorei inconsolável na quadra de esportes da escola, colegas solidários fizeram roda pra me consolar, e inviabilizamos a aula de educação física.
Belle foi comprada de um criador? Não sei. Sei que a tentativa seguinte foi a adoção: meu pai nos levou ao canil da sociedade protetora dos animais, e, entre os cães contidos em gaiolas, escolhemos uma filhote sem raça, branca, com uma única mancha preta no olho e orelha esquerdos.
Chamamos a pequena de Ursa Polar, que logo virou “Uxa”. Recebeu todas as vacinas (não suportaríamos outra morte trágica), e a amamos com toda nossa devoção infantil. Adotamos também dois cães adultos — Vera e Lobo —, mas Uxa era a única que criamos desde bebê, nossa menina, nosso amor.
Cães costumam ser ávidos, ao receberem suas refeições diárias. Na época, a ração industrializada não era tão onipresente. Meu pai cozinhava uma panelada de quirera de milho e miúdos de frango, e era isso que oferecíamos aos cães. Vera e Lobo avançavam sobre suas tigelas, engoliam tudo a bocadas, o mais rápido que podiam.
Uxa os contemplava. Não competia, não se apressava. Depois que os outros comiam, nós os prendíamos, e preparávamos a tigela dela, que comia aos poucos, mastigando num ritmo constante e digno. Eu sentava na soleira da cozinha. Acariciava suas costas. Ela deixava que a tocássemos enquanto comia, até lambia minhas mãos, diferentemente dos outros, que rosnavam a quem se aproximasse enquanto houvesse frango na tigela.
Associei a calma de Uxa ao amor que recebeu. Adotada quando parecia ainda meia bundinha de pão (o pão bundinha, que havia naquela época nas padarias de Curitiba), Uxa nunca passou fome, nunca foi maltratada. Protegida desde o ninho por três crianças que amavam os cães acima de tudo, Uxa confiava que o universo (nós) teríamos sempre quirera morna com pedaços de moela e pés de frango para lhe dar.
Viveu uns seis ou sete anos, e teve quarenta filhotes. Morreu com um tumor de mama, do tamanho de uma goiaba, deitada na garagem da casa, enquanto eu fazia carinho em seu corpinho fraco. Ela ainda me olhava com amor. Sabíamos pouco das doenças dos bichos, e não se faziam cirurgias e tratamentos avançados em animais domésticos, como se faz hoje.
Chorei menos pela Uxa do que por Belle. Aceitei sua morte com uma triste melancolia — eu já não morava em Curitiba, e deixaria a casa do meu pai logo que terminassem as férias de julho. Uxa viveu em pleno amor, pensei, e seu corpo agora se exauria depois de se dividir em dezenas de filhotinhos espalhados pelo bairro.
Muitas vezes, enquanto amadurecia, eu me vi como a Uxa. Calma, sem urgência de entrar nas competições amorosas ou profissionais da vida adulta — “boazinha como uma gata castrada”, dizia meu irmão (sem conhecer gatos, obviamente). Tive ainda três cachorros, já casada, depois desisti.
Engraçado. Hoje eu planejava escrever sobre nossa necessidade de transcendência. Depois pensei que a transcendência tem um espacinho pequeno em nossa agenda, lembrei de Freud, e li um artigo de vinte páginas sobre a economia da libido. Nossa energia psíquica é limitada, precisamos economizar. Até para imaginar o mistério, precisamos de verba e cronograma. Ao final da leitura, minha memória só me trouxe a imagem de uma doce cachorrinha, com uma mancha preta na orelha e no olho esquerdo.
Acho que meu inconsciente quis dizer: entre a transcendência e a economia, prefira a serenidade, uma tigelinha de quirera, um olhar de amor.