Memória vasta e sublime

A memória — essa máquina a tamborilar em nossa vida qual chuva intermitente a afagar o mundo — rega-nos todos os dias com a nostalgia e a melancolia
01/12/2000

A memória — essa máquina a tamborilar em nossa vida qual chuva intermitente a afagar o mundo — rega-nos todos os dias com a nostalgia e a melancolia, resumidas na saudade: palavra que assume aqui quase todos os tons da finitude da existência. Carlos Heitor Cony, num misto de amargura e sabedoria (sempre harmoniosamente juntas) resume bem esses sentimentos que nos assolam e nos impulsionam, como se vivêssemos com os olhos voltados para dentro, para um passado longínquo e esperançoso, sem vislumbrar no futuro o pouco que ainda nos resta: “Nostalgia é a saudade de um tempo perdido; melancolia é a saudade de um tempo que não houve”. E assim, todos os dias, na rotina que impulsiona aos divãs, aos botecos ou aos cemitérios, resta-nos o que ainda chamamos de convivência, em tempos tão alheios e propícios ao entrincheiramento na comodidade tecnológica.

Vive-se na saudade do tempo perdido, das coisas perdidas e até mesmo da saudade perdida: a época de criança/adolescência nos vem com mais freqüência ao emaranhado do cérebro à medida que nos afastamos da agilidade dos movimentos e nos aproximamos da imobilidade eterna. E por aí afora nos atiramos: o primeiro beijo, a primeira namorada, a primeira relação sexual, as brincadeiras etc. Ao escarafunchar os nebulosos meandros do passado, deparamo-nos, quase sempre, com a alegria de outrora ou, em alguns casos, com a tristeza de onde tiramos algum ensinamento. Oh! O ser humano e seus paliativos para esconder-se detrás da própria fraqueza. E como remeter-se ao passado é perseguir o alívio e respostas para o presente, rememorar tais histórias também consiste no amplo mundo da literatura. Não que isso seja sempre uma fórmula fadada ao êxito. Mas em muitos casos, quando a habilidade do escriba está acima de sentimentos pueris (a mera lembrança), tem-se o prazer encontrado apenas na  viagem dos olhos sobre a página.

Em casos recentes, podemos viajar pelos escritos memorialistas de Pedro Nava (a Ateliê Editorial está relançando toda a sua obra) ou ainda pelos contos de Invenção e Memória (Rocco), de Lygia Fagundes Telles. É o embrenhar-se pela memória e pela ficção sem o constrangimento de estar invadindo a intimidade alheia. Mas de nada vale adentrar o passado se dele saímos ilesos. Não é o caso dos cinco textos do escritor italiano Italo Calvino (1923-1985), que compõem O Caminho de San Giovanni (Companhia das Letras, 119 págs.), no qual a saudade está entranhada a cada passo, num pisar seguro em direção ao fim que nos espera. Seria um acerto de contas com a vida? Ou apenas as reminiscências do passado como uma faca a cortar nosso cotidiano? Sim, estamos diante de um dos maiores escritores deste século como se estivéssemos ouvindo as histórias que compuseram e compõem a nossa vida, principalmente na primeira narrativa, que dá título ao livro.

O texto O Caminho de San Giovanni é o embate entre filho e pai na busca do equilíbrio entre gostos que são explicitamente distintos. Assim como ocorre com quase todos nós. O pai ama o campo, enquanto o filho opta pelo deambular frenético no concreto das cidades, seus cinemas e suas mulheres. Mas na luta velada existe a eqüidade da vida. Mesmo assim deixa transparecer toda a diferença que os une. Não chegam ao extremo como faz o poeta irlandês Seamus Heaney  — Prêmio Nobel de Literatura em 1995 —, no belíssimo poema Seguidor (Poemas, Companhia das Letras, 1998): “[..] Eu tropeçava nas pegadas das botas,/Caía às vezes na céspede luzida;/ Às vezes ele levava-me nas costas/Descendo e subindo ao ritmo da lida./Eu queria crescer e lavrar./Fechar um olho, firmar os braços./Tudo o que fiz foi seguir sem parar/Pela fazenda à sombra de seus passos./Um estorvo, falante, falseando,/Caindo sempre. Mas agora/ É meu pai que vive tropeçando/Atrás de mim, e não vai embora (págs. 37 e 38).”

Ao contrário de Heaney — que também liberta-se das figuras do pai e do avô e opta pela caneta como ferramenta para buscar respostas: “vou cavar com ela” —, Calvino fica ao lado do pai até o momento da liberdade, mesmo que esta seja numa viagem no cinema, como acontece em Autobiografia de um Espectador, texto que descreve a paixão do escritor pelo imaginário da tela. Ao remeter-se pelas profundidades do ser humano, descobre-se na lucidez comparativa inerente aos mestres. É o que pode-se comprovar em La Poubelle Agréée, cujo conteúdo desnuda, no corriqueiro ato de recolher o lixo, a complexidade de nossa existência, ao partir da premissa que “somos o que não jogamos fora”. As comparações com alguns textos de Julio Cortázar, em Histórias de Cronópios e de Famas, são inevitáveis.

É pelos labirintos da memória que Calvino nos leva. Sempre está ao nosso lado, às vezes, apenas à espreita. Sem nostalgia, porque não tem saudade de um tempo perdido; sem melancolia, porque não tem saudade de um tempo que não houve. Esses sentimentos podem, sim, aflorar-se no leitor, pois a cada releitura de Calvino, somos impelidos a uma saudade melancólica e nostálgica de sua presença e de nós mesmos.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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