O impostor ladeado por fontes no baile da cebola

Quando cheguei ao baile — música lenta, corpos se esfregando como se ali o mundo esfacelar-se-ia em segundos, a luz bem penumbrosa a espiar algumas inseguras apalpadelas nas carnes alheias,
Manoel Carlos Karam, autor de “obras sincopadas e pontiagudas”
01/04/2001

Quando cheguei ao baile — música lenta, corpos se esfregando como se ali o mundo esfacelar-se-ia em segundos, a luz bem penumbrosa a espiar algumas inseguras apalpadelas nas carnes alheias, um odor adocicado de bebida e uma estante com livros, que, é bem verdade, tinha pouca utilidade — vi no contraste da festa a figura solene de Manoel; estava parado com a barriga encostada no balcão a sorver, com a parcimônia de um bebedor seguro, talagadas comedidas do copo; coçava a barba e olhava de olhar pequeno para mim. Sem ao menos cumprimentar-me, disse-me: “conto como foi a guerra no ponto do ônibus através de quadros. Um historiador que pinta quadros. Dá para desconfiar” (Fontes murmurantes, 1985). Sim, e como dá para desconfiar, e logo desconfiei que Manoel iria falar muito aquela noite sobre tudo e sobre todos. Animei-me, deslizei a corpo pela cadeira e pensei como poderíamos ter nos encontrado naquele lugar: se não éramos noctívagos ou grandes bailarinos?

A resposta veio na espiadela no calendário, com uma foto de uma mulher vestida toda de preto, pregado na parede. Era dia de são nunca. E nesse dia, desde muito tempo, encontrávamo-nos pelas ruas e bares de Curitiba a festejar a descoberta das saborosas bolachas maria. Nunca combinamos e tampouco falamos sobre o assunto. Mas comemoramos sempre com entusiasmo tão importante dia, organizado e patrocinado pelo Joca. E é nesse dia ou noite (como é o caso agora) que Manoel sobe em bancos, mesas, trampolins… e discursa: “vive-se permanentemente em estado de busca, o que eu busco é descobrir qual é a minha busca, o cão tenta morder a própria cauda mas eu, que não tenho cauda, não sei morder, e os sintomas de que já encontrei a minha busca podem ser falsos”. E completa: “não se leva desaforo para casa, dorme-se num hotel e quem não tiver pedras que se atire” (Comendo bolacha maria no dia de são nunca, 2000). Carlos é assim. Sempre em busca dos inúmeros sentidos que a vida nos apresenta, anda, e como anda!, pelas ruas da cidade a pensar na cidade e como ela nos incendeia a vida, nos sufoca, nos oprime e nos tira o pouco sono que nos resta. Olha, observa, sente os que o rodeiam; sempre a perscrutar uma forma de descrevê-los, de senti-los como “há quem fique num bar fumando. Só isto, sentado num café fumando. E há quem faça um pouco diferente: ande pelas ruas fumando, o que pode ser a mesma coisa que ficar sentado num café fumando”. (O impostor no baile de máscaras, 1992).

De repente, a música lenta é sufocada pela voz rouca de Louis Armstrong, que com a companhia de trovões de uma tempestade que ensaia ao longe, conduziu vários corpos pela casa com Give me a kiss to build a dream on. A cena patética, mas necessária, da mulher apoiando a cabeça no ombro do homem espalhou-se pelo pequeno salão. Nós continuávamos a tomar nossos líquidos nos copos quando um pequeno animal que parecia ter duas patas traseiras direitas — uma coisa bem estranha, pois mesmo sem ter uma pata esquerda, caminhava com desenvoltura — atravessou a casa com as penas chamuscadas. Fagulhas vinham do sótão e desciam pelo corrimão da velha escada. A casa estava em chamas e ninguém arredava o pé do salão, agora inundado por Cabaret. “Olhe o fogo, Karam”, disse para o meu comparsa de conversa. Mas como resposta apenas ouvi: “Veja, Cândido está socorrendo livros do incêndio. Preocupado com as chamas, ele apanha em seu quarto, onde o fogo se derrama pelas paredes… Cândido carrega a pilha de livros nos braços, está tirando os livros do quarto, onde o fogo se derrama pelas paredes” (Cebola, 1997). E Cândido com uma máscara e um punhado de livros correu em direção ao jardim, deixando-os sobre as fontes murmurantes.

Irônico, sim. Tudo em Karam tem muito da ironia necessária à vida. Ironia sutil, sublime, desleixada, mordaz, inteligente, doída como espetar espinho embaixo da unha depois do banho; entra fácil na carne mole. Em plena festa, esse incêndio. Acho que foi engendrado por ele, quando Armstrong bolinava What a wonderful world. A festa arrefeceu os ânimos depois do incêndio. Alguns deixaram a casa com os casacos nos ombros. Os braços enrolando as mulheres. Iam fazer sexo, ou amor, como preferem os iludidos. Eu, muito bêbado, ainda tive a curiosidade de saber quem era esse tal de Cândido, ou o nome dele seria Louis. Quem era? Manoel Carlos, com sua ironia ferina, respondeu-me: “Tínhamos duas semanas de cessar-fogo por ano. Era durante a Semana dos Voluntários da Pátria, que caía em meses diferentes para nós e para os taedos. Nós fazíamos as homenagens em fevereiro, os taedos em setembro — ou vice-versa, nunca me lembro. Os nossos Voluntários da Pátria eram heróicos soldados que participaram da guerra contra os taedos, eles passaram um bom tempo da vida deles matando os Voluntários da Pátria dos taedos. Voluntários da Pátria passaram a ser sinônimo de cessar-fogo durante a guerra e de feriado para o resto da vida. Tem também a história do Voluntário da Pátria Desconhecido, ele levantou do túmulo para comprar cigarros e nunca mais voltou” (Pescoço ladeado por parafusos, 2001). Cândido era um Voluntário da Pátria Desconhecido.

A mulher da limpeza, como era conhecida a mulher responsável pela limpeza da casa após os bailes, já enxotava nossos pés, quando Manoel Carlos Karam catou o casaco e o amarrou na cintura. “Para onde vai, meu caro?”, perguntei. “Como dizia Bernardo Bertolucci, não sei para onde estou indo, mas não posso ficar parado”, respondeu-me. Fiquei ali parado segurando os quatro livros que resistiram ao incêndio.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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