Sei que citar exemplos é excluir/esquecer nomes
A busca da originalidade é, também, o risco da incompreensão. Entremeio à mesmice literária (isso não quer dizer baixa qualidade, apesar de reinar uma certa letargia) brasileira, o desafio é espanar a poeira e o ranço que dão à ficção um gosto de estagnação, de deja vù literário.
O poeta Mário Quintana equivocou-se ou apressou-se — o que invariavelmente leva ao equívoco — ao dizer que “os clássicos escreviam tão bem, porque não tinham os clássicos para atrapalhar”. A sombra dos clássicos é reconfortante, onde o escritor refestela-se e bebe de uma fonte inesgotável. E do clássico nascem outros clássicos e infinitamente… Mas as questões da atual literatura brasileira não são suas influências (muitas, considerando tantas tentativas), mas o resultado de tais influências na numerosa produção. Os minicontistas seguem Dalton Trevisan e dele se distanciam. Exemplos de bons contistas como Nelson de Oliveira, Evandro Affonso Ferreira, Zulmira Ribeiro Tavares, Marçal Aquino e Antonio Carlos Viana (para citar apenas alguns) se multiplicam. Sem falar nos clássicos como Lygia Fagundes Teles. Mas muitos ainda apenas tentam: alguns com certo brilhantismo, outros com plágio involuntário.
O brevíssimo exemplo do conto brasileiro estende-se à poesia e ao romance numa igualdade aterradora. Os movimentos literários — desnecessários e necessários numa ambigüidade, muitas vezes, desoladora — perpetram a aglutinação de nomes e “linhas” que servem apenas para defini-los como parte de um determinado feudo literário. Assim nascem os seguidores. Patrícia Melo é seguidora de Rubem Fonseca (apenas outro bom exemplo); os novos poetas (invariavelmente preguiçosos e de pouco talento) enveredam para os haicais — como se estrepam na falsa simplicidade dessa pretensa arte! — e endeusam Paulo Leminski, um poeta que sobrevive mais pela atribulada vida que levou do que por sua titubeante poesia. Até mesmo o festejado “projeto” de Valêncio Xavier em misturar imagens e palavras — lembrem-se que tal fórmula foi explorada com sabedoria por Cortázar e Pirandello e, de maneira despretensiosa, por Ignácio de Loyola Brandão — torna-se um arremedo de si mesmo. Os exemplos da busca do novo se reproduzem com extrema facilidade. As aproximações a “ídolos” são, a muitos, incontroláveis. As tentativas espraiam-se no infinito. A reclusão e a reflexão de uma literatura são necessárias e, portanto, prementes.
Mas enquanto muitos ainda debatem-se no acerto de suas influências, Fernando Monteiro abre caminho pela selva com um facão bem afiado, corta o mato com habilidade e abre uma clareira onde poderá descansar e, quem sabe, soltar um sorriso de alívio. Um sorriso de sobrevivente depois da batalha. Desde a “aparição” de seu Aspades, Ets, Etc. (2000, Record), Monteiro causa um certo estranhamento à mesmice. Bom estranhamento. Mas se o cineasta Vasco Aspades do Carmo causou-nos fascinação, as escavações e fugas de Giovani Belzoni, ou Dmitri Vonizin, ou Alberto Childe — encarnações de um mesmo personagem — vai levar-nos agora à loucura e a uma estranheza incômoda, em A Múmia do Rosto Dourado do Rio de Janeiro (Globo, 248 págs.). Aviso: antes de arriscar-se pelas páginas, respire fundo e prepare-se para uma viagem turbulenta, com idas e vindas capazes de, muitas vezes, esmorecer até mesmo o mais persistente leitor de primeira boa viagem. É leitura para amantes da sabedoria e da inteligência. E não espere facilidades. Não espere a compaixão do escritor. Muitos escritores medíocres escrevem para leitores medíocres. Fernando Monteiro faz o contrário: nunca despreza a inteligência de seus leitores. Ao terminar a leitura, tem-se a prazerosa e estranha impressão de que não foi você quem escolheu o livro, mas ao contrário.
Em Fernando Monteiro não há espaços para concessões, para contemporizações. O título sugere uma trama mirabolante. E a encontramos, mas muito distante da facilidade das tramas mirabolantes e pífias dos romances recheados apenas de aventuras (não é uma generalização). Ao adentrar a câmara sepulcral da pirâmide de Quéfren, no Egito, o italiano Giovanni Belzoni abre a primeira porta para um misterioso caos que levará o leitor a uma viagem do Egito ao Rio de Janeiro. Belzoni “transforma-se” no russo Dmitri Vonizin que, ao mesmo tempo, esconde-se sob o nome de Alberto Childe. Ou seria o contrário? Nunca tenha certeza em A Múmia… Ela não existe. São recortes de uma literatura que atiçam a turbulência como maneira de fugir da mesmice. Tudo com boas doses de erudição e de um texto requintado, sem cacoetes ou falsa originalidade. Fernando Monteiro faz parte do grupo (tudo bem que o grupo de Monteiro seja ele mesmo) que encara a literatura como a intelectualidade contra a barbárie do comum, do lugar-comum, da facilidade expressa em frases simples. Monteiro busca (e consegue) o requinte, a erudição, sem a intenção de agradar. Quer apenas elevar — desafio dos mais instigantes — a literatura e, assim, considerá-la a arte que luta contra a mesmice e um certo ar de mediocridade que há algum tempo tentam nos sufocar.
• A literatura é uma prazerosa fraude?
A literatura é uma — grandiosa — fraude certamente menos prazerosa para quem a cria do que para quem a lê. Alguém já disse que o escritor busca sempre escrever o livro que gostaria de ler — e aí temos a falsa serpente mordendo a cauda de polietileno, a resposta circular que nos devolve à praia misteriosa da leitura. Nunca mais se volta ao centro da terra, não há nada que nos devolva a “hora do esplendor na relva” — mas esse livro que ficou para trás e no mais fundo da consciência, esse tecido vário de todos os predecessores (a literatura é uma tapeçaria só, suponho) a gente vai compondo como quem cria a escada para o próximo passo do pé (isso quando não se cai de quatro metros de altura, como é mais freqüente acontecer). Hoje, mais do que nunca, trabalhamos sobre o já trabalhado e há muito pouco ainda por dizer — mas ninguém vai desistir (e não sofrer) para desentranhar de si aquele livro que teima em existir, em se fazer ler pelo “leitor” que é o escritor forcejando para escrevê-lo.
• E o senhor já escreveu o livro que gostaria de ler?
Claro que não. E me considero muito longe, ainda, de fazê-lo. Além do que, no dia em que consiga escrevê-lo (se conseguir), o mais provável é que eu o leia, embarque num cargueiro (sem livro nenhum) e nunca mais ouçam falar de mim.
• A leitura de A Múmia do Rosto Dourado do Rio de Janeiro causa estranheza por aquilo que é e também pelo que deixa de ser. É um romance repleto de lacunas, com múltiplas portas e janelas que são abertas (às vezes, escancaradas) para que o leitor adentre. O personagem Dmitri Vonizin também é multifacetado. Esse seria o grande trunfo do livro: desvendar um lado que anda obscuro na literatura?
Eu trabalho com a lacuna como algo de tanto valor quanto o texto-presente-no-texto. Essa espécie de estratégia veio justamente da observação do terreno menos trabalhado, e onde ainda se pode escrever com alguma originalidade. Não tenho medo — nem falsa modéstia — diante dessa palavra. Tenho tentado construir personagens (Vasco Aspades, Vonizin etc.) feitos de lacunas que se tornam presença — com a ajuda do leitor. Nesse sentido, minha contribuição não tem um modelo, digamos, precedente… e talvez por isso a empatia de alguns leitores para com os três romances publicados — e que são, reconheço, menos fáceis de ler do que a maioria dos títulos brasileiros recentes. Comecei a experimentar a lacuna no Aspades. No princípio, eu lidei com a tentação de “preencher” a lacuna, logo mais adiante etc. Era uma espécie de vício do processo normal (aclarar, esclarecer, ocupar o vazio ou a ambigüidade), mas logo percebi que esses “enchimentos” criavam uma realidade ficcional mais pobre do que aquela da zona de sombra, que o leitor poderia completar, imaginariamente, quase interagindo com o que está explicitado na parte, digamos, “positiva” dos livros (se pensarmos numa analogia com o branco e preto, o positivo e o negativo). Ora, o real é feito do que não sabemos — e nunca vamos saber. Um exemplo bom disso — quer dizer, do que não deve ser feito — esta no Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell. São quatro romances que têm a pretensão de expor, ficcionalmente, a teoria do relativismo — usando a mesma cidade, os mesmos personagens etc. — e cuja realidade romanesca só vai se enfraquecendo à medida que Durrel desenvolve suas unidades de espaço/tempo, e a partir do terceiro romance, vai inelutavelmente preenchendo tudo que ainda não sabemos de Justine, Pursewarden, Nessim, Melissa, Mountolive, Baltazar… e, no final, no romance derradeiro — Clea — tudo que ele conseguiu no primeiro (e melhor dos romances), Justine, jaz apenas desfigurado e quase destituído de interesse.
• Na epígrafe do romance, Orson Welles diz: “Tudo é verdade”. Mas toda verdade, sem que esteja totalmente ligada à sua própria concepção, pode ser mentirosa. Em A Múmia…, a expressão “tudo é verdade” pode ser lida como “tudo é mentira”?
Sem dúvida. É como se você me apresentasse um cartão todo branco até a outra perfeita metade pintada de preto: de que cor é esse cartão, se a luz estiver apagada? Se a luz estiver apagada, desculpem, não altera nada. Mas, eu digo que o cartão é preto. Você diz que o cartão é branco. Alguém diz que o cartão é branco-e-preto e esse alguém está de óculos tão escuros que ele não está vendo nada, mas fala de qualquer jeito. Aí, como ele assim mesmo acerta, eu passo à próxima pergunta: o cartão é preto e branco — ou branco e preto?
• Em A Múmia do Rosto Dourado…, as imagens se sucedem com uma velocidade avassaladora, como se a literatura fosse incapaz de aplacar a ânsia de comunicação do escritor. É incapaz? É tão incapaz como se mostra o cinema?
Eu concebo um romance de forma quase “física”. Com isso quero dizer que as situações, os “cenários” e os personagens não me chegam “achatadas”, não se formam daquele modo unidimensional das palavras. Ou seja, um ambiente — por exemplo — se constrói, na minha imaginação não só aceso naquela cena, focado naquele foco (desculpem a tautologia), mas com as portas que dão para os outros aposentos, para o quarto ou a janela entreaberta o suficiente para se ver a mulher que veste a meia de seda, com o pé apoiado numa cama que está desarrumada etc. Bem, essa é uma totalidade de coisas que me obriga posicionar as câmeras da escrita, a dispor a “iluminação” e vigiar os atores-personagens, com o canto do olho, enquanto eles “ensaiam” a cena na parte não-iluminada.. e tudo isso pede uma lente-aquário, uma “olho-de-peixe” de mais de 180 graus de atenção para o presente e para o passado inventados mas (é a intenção) do modo mais alucinantemente real possível. Algo como um 3-D ficcional (para fazer à alusão a um velho truque de feira que está voltando à moda) tomado por cinco, dez câmeras que produzirão o material bruto a ser depois enviado para a sala de montagem onde teremos que escolher e dar o ritmo de que você fala (“avassalador”) ou mais lento até o slow-motion. Não tenho nenhum problema em dizer: sou um escritor treinado pela sensibilidade cinematográfica contemporânea. Só que eu acho que eu acho que o cinema começou com aquele cineasta grego, muito parecido com o americano John Ford… Como é mesmo o nome dele? Está na ponta da língua (começa com H)… Ah, Homero!
• Desde Aspades, Ets, Etc., a sua literatura mostra-se desconfiada da realidade. E o senhor busca entrelaçar falsa realidade e ficção. É fuga ou busca de respostas (algumas impossíveis)?
A realidade é alguma coisa percebida, uma fantasmagoria de pé do outro lado do rio do encéfalo, entre as árvores de dois hemisférios na sombra. Nada é menos “real” do que a realidade. Sobre essas sombras projetadas no lençol da mente, nós ainda achamos de tecer histórias, tapeçarias internas, miniaturas persas bordadas sobre a cabeça de alfinetes! Bem, qualquer atitude crente, crédula — isto é, qualquer certeza por entre os feixes de onda que projetam os fantasmas etc. — me parece não mais que o otimismo de um cego que embarca numa nave especial certo de que vai compreender o universo porque os dois astronautas do seu lado conversarão a viagem inteira. Eu não confiaria nisso, se fosse ele, e sendo cego como todos somos, afinal. “Para o cego, todas as coisas são súbitas” — diz a epígrafe de A Cabeça no Fundo do Entulho. Enfim, minha ficção — para fazer uma analogia talvez adequada — se socorre da “realidade” como o cego da nave teria que se socorrer de algum mapa astrofísico em braile…
• O jornal O Estado de S. Paulo tem discutido aos domingos o ofício de escrever, com o depoimento de escritores nacionais e internacionais. As respostas vão desde inspiração (o que considero um erro), passando por obrigação até chegar a um laborioso trabalho. Como o senhor define o ofício (arte) de escrever?
Escrever não é um trabalho como outro qualquer. O escritor-demagogo que sustente isso é somente isso: um demagogo tentando agradar a platéia com uma mistificação politicamente correta na boquinha pintada de demagogo incorreto. Escreve-se para aprender. Com a zona de sombra, com a zona que não sabe — e quer saber — escreve-se com a carne mortal e mais aquilo que move o sol e as estrelas, e que eu não sei o que é. Escreve-se para se parar de sofrer. Escreve-se para se parar de escrever. O escritor é um sábio sobre nada exatamente — e cuja atividade misteriosa, sobre esse nada, altera o nosso ser. Talvez se escreva para se acrescentar uma beleza totalmente humana — e que não estava, antes, na natureza indiferente. Talvez se escreva para tecer o rosto de Deus feito de todas as belezas que não nasceram “diretamente” da indiferente natureza. Talvez se escreva como a melhor preparação para morrer.
• O senhor não me parece um pessimista (não como Cioran, por exemplo), mas o conto A Coleção em Negro, publicado aqui no Rascunho, em agosto, levava a seguinte epígrafe: “Tudo é para se perder e nada é para sobrar”, de Lúcio Graumann. Esse seria um pessimismo diante da literatura ou da vida (que podem ser a mesma coisa)?
Acredito — com Lúcio Graumann — que “tudo é para se perder”, de fato. Talvez alguma coisa possa “sobrar” precariamente (penso na Acrópole, por exemplo, um desenho mental que se transferiu para a realidade de argamassa e pedra — e que anda sobrepaira sobre Atenas, próximo da lua e da nuca perfumada de alguma garota grega)… mas tudo — mesmo a Acrópole e a lua (para não falar da moça ateniense) –, tudo vai desaparecer, um dia. Isso deveria nos ensinar o desprendimento com relação a todas as coisas: o fio de cabelo no pente de ouro, as páginas perdidas na memória do computador burro. “Tudo é para se perder e nada é para sobrar” é talvez uma frase que somente se ilumina com a leitura do romance (A Senda da Surata) do qual foi extraída…
• Há cerca de dois anos, o senhor disse que literatura brasileira era “rasa, rala e reles”. Em tão pouco tempo, o que mudou?
Está melhorando, dando “mais e melhores” sinais de vida. Nesses dois anos, Nelson de Oliveira publicou três livros, José Castello estreou como bom romancista, Michel Laub confirmou seu talento com Música Anterior e surgiram os jovens da geração 90 (com boa amostragem dos contistas no livro Manuscritos de Computador, que acaba de ser publicada pela Boitempo), além de novos poetas como Fabrício Carpinejar, com uma força de expressão de novo voltada a interioridade que não se alheia da vida e do mundo em torno. Uma voz amadurecida, como a de Marco Lucchesi, também compareceu, no ano passado, com Os Olhos do Deserto e os Poemas Reunidos — enquanto a semente de revistas culturais como a BRAVO! e a Cult continua medrando em solo um dia adubado por talentos como Jorge de Lima e Lúcio Cardoso, para citar apenas dois nomes contemporâneos cujas obras honrariam as melhores literaturas do mundo.
• De que maneira explica-se o sucesso das coletâneas (cem melhores contos, poetas, poemas etc.)? Considero tais coletâneas perigosas, quando realizadas como cânones. É óbvio que muitas são (e assim devem ser avaliadas) escolhas pessoais dos organizadores. Como o senhor as avalia?
Olhe, minha resposta anterior poderia ser tomada como uma nota de otimismo — mas aqui eu acrescento uma nota já agora apreensiva com o que eu chamo de “gracinhas editoriais”, que surgiram principalmente nas grandes casas editoras brasileiras. Os nossos publishers parece que se descobriram cheios de “idéias brilhantes”; eles estão se saindo com “originalidades” tais como as famosas coleções temáticas e outros disfarces para ocupar a mídia e fazer caixa. Os escritores estão caindo nessas armadilhas e descobrindo um jeito de escrever aquilo que os editores, de repente, deram para lhes encomendar, do dia para a noite. Eu ouvi João Ubaldo dizendo, em alto e bom som, no programa Roda Viva (da TV Cultura) que topa qualquer empreitada, não tem nada contra “encomendas” e que será capaz de produzir quantos budas ditosos outras companhias de letras lhe peçam. Sem comentário.
• O gracejo fácil é um câncer que se alastra pela literatura brasileira? (Levemos em consideração coleções da estirpe de Plenos Pecados e a glorificação de escritores como Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro e Mário Prata, endeusados pela mídia e por uma pretensa classe média intelectualizada.)
É outra praga, essa. Ela faz com que se encare até o humorista Jô Soares como “escritor” — o qual entrevista o Prata que elogia o Veríssimo que admira o Ubaldo que escreve sobre budas para quem puder pagar. Esse é o lado ruim do atual momento, a “literatura do caixa”, nascida com a bunda virada para a lua do Mercado. Estou falando isso em português claro e não receio despertar as antipatias dos arraiais onde se premedita e se executa essa falsa literatura. Pago o preço que for preciso para dizer claramente o que eu penso sobre coisas desse tipo.
• A Múmia do Rosto Dourado do Rio de Janeiro aponta (mais do que seus outros livros, talvez) na direção contrária dessa literatura fácil, digestiva, de consumo. Isso significa que a sua nova editora — a Globo — também está apostando em novas saídas?
Acho que o Wagner Carelli poderia responder, com mais autoridade, sobre as novas apostas da Globo, mas sinto que ela está empenhada em colocar também a qualidade no mercado, definindo o perfil de cada escritor que publica e procurando o seu público. É, aliás, o que eu espero da editora: que ela saber “vender” o tipo de ficção que eu pratico. O Wagner conhece bem a história do meu primeiro romance, publicado primeiro em Portugal (em 1977), porque foi ele que, na BRAVO!, pautou e escreveu a primeira matéria sobre o livro. A Globo também está empenhada em atingir o público de outras línguas, exportando o autor brasileiro — e isso me interessa bastante porque acho, sinceramente, que o Aspades, A Cabeça no Fundo do Entulho e A Múmia do Rosto Dourado têm boas chances editoriais lá fora, em tradução. Talvez esteja destinado à Globo, no mercado editorial brasileira, a abertura de fronteiras para autores brasileiro de livros sofisticados — na estrutura e na forma — e não só identificados com as imagens pattern do Brasil “folclórico” literariamente (o similar da mulata e do samba pelo quais nos “vendemos” lá fora).
• Borges chamava de escritores laterais aqueles grandes escritores que viviam à margem da badalação tanto de leitores como da mídia. O senhor parece estar alheio às chamadas panelas literárias, que se reproduzem com extrema facilidade Brasil afora. O senhor se considera um escritor lateral, já que muitos podem considerá-lo difícil de ser lido?
O escritor lateral não é “lateral” senão porque sua obra trilhou por uma espécie de desvio, de caminho vicinal da grande avenida da literatura. Um exemplo muito bom é o do francês Victor Segalen, cuja obra foi mais do que uma influência sobre o seu discípulo Saint-John Perse. Acontece que Perse ganhou o prêmio Nobel de literatura — com uma obra praticamente de imitação do seu amigo Segalen — e este caminhou para o esquecimento, longe e arredios às tais “panelas” que você menciona. No entanto, eu não me vejo trabalhando numa vereda assim tão secreta. Meus livros se vendem bem — paradoxalmente — e agora mesmo a Globo acaba de me informar que A Múmia do Rosto Dourado… está com uma ótima performance nas livrarias, com três meses de lançado. Pelo menos um dos meus romances — A Cabeça no Fundo do Entulho — eu diria que não oferece, creio, nenhuma dificuldade para o leitor (sintomaticamente, é o mais vendido dos livros que publiquei pela Record). Acho que o escritor lateral teria uma “pureza” — radical — que eu não chego a aspirar, assim tão rarefeita. Os leitores me interessam. Eu escrevo para eles, apesar de não fazer concessões ao gosto médio, formado e incentivado — inclusive por algumas editoras — mais recentemente. Talvez a iniciação em cinema tenha desenvolvido nossa afeição pelo público (naquele seu tatear em busca de uma qualidade que freqüentemente lhe negam). Mas, ele não é burro. Burro é quem pensa que o público é burro.
• Em todos os seus livros há um mistério intrínseco ou falsamente escancarado. Há sempre rondando seus escritos assassinos misteriosos, principalmente em A Cabeça do Fundo do Entulho. Qual a sua aproximação (ou admiração) dos bons romances policiais?
A literatura policial fez parte — tanto quanto os clássicos — da minha formação. Volto a essa questão dos leitores terem um gosto, um “faro” não-burro: foi esse público, na sua fidelidade, quem fez elevar o nível, indiretamente, das novelas policiais e das histórias em quadrinhos, no século que acaba de passar. Hoje, a literatura policial é um gênero literário respeitado como qualquer outro e os comics são encarados, muito naturalmente, como uma alta forma artística. Nessa aventura, a adesão do público foi o elemento formador (e “apurador”) do gosto e da qualidade dessas linguagens voltadas para as “massas”. Eu nasci em 1949, na metade do século 20, e considero uma sorte ter sofrido a boa influência dos romances policiais maduros, refletindo a vida urbana, meditando sobre o crime e o castigo, a lei e a transgressão da lei, com alcance de meditações sobre a condição humana. O cinema foi de grande ajuda na formação dessa verdadeira “mitologia” do vigésimo século (que é o Romance Policial) e mais uma vez tudo isso se reflete naquilo que eu produzo, de uma forma bem natural, repito. Eu gosto muito — se me permite confessar — de A Cabeça no Fundo do Entulho. Acho que a primeira narrativa desse livro (“Átila em Roma”) daria um bom filme.
• O senhor é admirador e conhecedor dos clássicos e, cita com freqüência, Melville e Conrad. E também escreveu uma breve biografia de T. E. Lawrence. Eles se caracterizam pela emoção narrativa de grandes aventuras (leia-se Moby Dick, Lord Jim, Os Sete Pilares da Sabedoria) e pelo domínio sobre estas emoções. Como a sua literatura espelha-se nos clássicos?
De acordo com a imagem de um belo poema longo de Maria Carpi — que estou lendo no momento — estamos no tempo do “herói desvalido”. Desde a “waste land” de Eliot (ou desde antes), a terra desolada, o cenário de fraquezas delineia aquela linha de sombra — para usar da imagem recorrente em Conrad — na qual agora definitivamente penetramos: uma época convivente com o deserto moral de todos os cinismos. T. E. Lawrence — que foi uma espécie de santo moderno, niilista — saberia bem do que se trata essa Era da Intranscendência absoluta, por todos os títulos e motivos (acabo de traduzir — para a Record — a sua obra mais sombria: The Mint). Num tal limbo, eu acho que mais do que nunca se torna necessário buscar saúde artística, moral e intelectual nos grandes clássicos, nas obras escritas por gigantes escrevendo sob a luz incerta de velas acesas em navios sem radar nem sonar, no meio do tufão da vida. Penso sempre em Shakespeare (e outros gênios protéicos da sua mesma altura) dispondo de um micro pessoal! — e de uma simples luz de 100 watts numa Inglaterra sem apagões. Isso obriga a que todos pelo menos tentemos escrever os “clássicos” do século 21, as obras que — se espera — serão a nova herança dos futuros colonizadores das estrelas…
• A literatura é uma prazerosa verdade?
A literatura é uma — grandiosa — verdade que certamente se desmente a cada minuto, nesta entrevista e em todos os livros da árvore cinzenta da literatura. Pois verde é só a árvore da vida.