Primavera

Os cheiros da primavera são capazes de trazer um tempo de saudades e boas lembranças
Ilustração: Thiago Lucas
30/09/2024

Chegou a Primavera, minha época preferida. Quando era pequeno celebrava a entrada da estação certo de haver naquele trimestre que se iniciava a alegria de um parentesco. Afinal, era minha prima quem iria comandar os próximos meses: Vera. Imaginava a moça em um vestido bordado, romântico, na cabeça uma tiara colorida enfeitada com sempre vivas. Ela ria alegremente festejando pétalas. A minha prima Vera ficaria três meses hospedada em todas as casas do Brasil. Bem-vinda! E eu ouvia Cartola afirmar que as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti sem entender direito. Como as rosas poderiam roubar? Mais tarde aceitei. Se o sujeito escrevia versos dizendo ser o mundo um moinho que iria triturar meus sonhos tão mesquinhos, ele jamais poderia estar errado, confundir-se. Começando com setembro o milagre do aroma florido, como cantou o Poetinha, afirmando ser a rosa a mulher rescendendo de amor. E eu satisfeito, pronto para o aquecimento que ainda não era o global, apenas um esquentar em direção aos meses de férias. Quando a Primavera crescia e virava Verão.

— Quantas primaveras você tem?

— Setenta.

São tantas primas…

E apesar do ar enfumaçado e assim queimado os ipês estão floridos. Amarelos, roxos. brancos. Enfeitam calçadas empoeiradas. Acácias, amarantos, begônias, girassóis, azaleias, crisântemos, petúnias, narcisos, dálias, antúrios, hortênsias, lavandas, lírios, tulipas, violetas, camélias, magnólias.

E então a fragrância das damas-da-noite entra por minha janela. E a memória viaja para longe dali. Os cheiros são capazes de trazer o tempo junto com eles. Tempo, tempo, tempo. De praia, brincadeiras, anoitecer despreocupado. Eu menino descalço sem camisa. A casa da rua Tamanás. Tempo, tempo, tempo. O grande senhor. Existirmos, a que será que se destina? Inverno, outono. Se o frio bate na alma perco de mim a dança. Nem me convide para dançar. Gardênia!

— Quantas primaveras você tem?

São tantas primas Vera…

E as músicas insistem no compasso dos buquês, pois o ciclo começando é florilégio.

Um girassol da cor dos seus cabelos. Eu vejo flores em você. Que não seja a rosa radiativa, estúpida e inválida. Pois quando tu me deste a rosa pequenina, uma abelha no jardim brincou com a cravina, valsou com o jasmim. Mandacaru quando fulora na seca.

Alguém celebra na rede social ter recebido flores da neta. Não é primavera? A sensibilidade da menina aflorando.

E já que é temporada começando, relembro um haicai que fiz outro dia:

Parque do Carmo
Bosque, cerejeiras
japonesas de Okinawa.
Flores rosa forte.

Ricardo Ramos Filho

É escritor, professor de literatura e produtor cultural. É presidente da União Brasileiras de Escritores (UBE). Autor, entre outros, de Computador sentimental, O livro dentro da concha, Conversa comigo e Cidade aberta, cidade fechada.

Rascunho