De onde ela vem? De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!
Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!
Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica…
Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica!
Poucos, pouquíssimos poetas desfrutam do prestígio que o paraibano Augusto dos Anjos tem, tanto no âmbito de leitores especializados quanto entre leitores em geral. Numa palavra, sucesso de público e de crítica. Sobre sua vida e sua obra, há muitos e muitos estudos, sendo o poema A ideia um dos mais investigados. Aos 30 anos (1884-1914), morreu de pneumonia, sem testemunhar o alcance e a permanência de seus poemas. A dificuldade para enquadrá-lo em um rótulo de estilo literário encontra curiosa correspondência no interesse que distintas áreas do saber demonstram pelo teor de sua poesia: não só a crítica literária tem se debruçado incessantemente sobre sua obra, mas também psicologia, biologia, teologia, filosofia, psiquiatria, fisiologia, neurologia e a história tentam entender esse estranho “eu” e todo o contexto em torno que se expressam no livro Eu, de 1912, que reúne poemas que ninguém consegue aprisionar se parnasianos, se simbolistas, se românticos, se expressionistas, se pré-modernistas ou mesmo modernos, talvez porque “ninguém doma um coração de poeta!” (Vencedor). Não à toa, o termo sincretismo tem servido para sugerir um espaço múltiplo de pertencimento dessa obra tão diferente.
À exceção do primeiro verso de A ideia, feito em sáfico (acento forte na quarta e oitava sílabas), todos os demais decassílabos são heroicos (acento interno na sexta sílaba), o que, com todas as rimas consoantes, contribui sobremaneira para o ritmo fluido e linear dos versos, que, assim, encena de algum modo o próprio trajeto — estrofe por estrofe — do objeto central do poema: nascimento, vida e morte de uma ideia. E aqui se antecipa uma contribuição que parece ter escapado, talvez por demasiadamente óbvia, às análises (consultadas) desse poema: o poema A ideia é a prova per si de que — contrariando o que se diz no poema — se deu luz à ideia de um poema com o título A ideia. Todo o esforço de (a) compor 14 versos, (b) distribuídos em dois quartetos e dois tercetos, (c) todos com 10 sílabas e (d) com tônica na 6ª sílaba, (e) com rimas clássicas em ABBA ABBA CCD EED; e de (f) contar, em meio a esse engenho rítmico e rímico, a trajetória de uma representação mental — a ideia — que transita entre o abstrato intangível e o concreto corporal, todo esse esforço é ele mesmo prova e testemunha de que, a despeito de seu caráter aporético, ou por causa dele, é possível dar alguma forma àquilo que, parece, forma física nenhuma teria. Ou seja, o substantivo abstrato “ideia”, conceito a partir do qual já se formularam profundíssimas reflexões filosóficas, de Platão a Hegel e contemporâneos, se torna algo concreto: um engenhoso soneto de nome e título A ideia, do paraibano (de Engenho do Pau d’Arco) Augusto dos Anjos.
Para Anatol Rosenfeld, “O mundo de Augusto dos Anjos é, por assim dizer, na sua essência, proparoxítono, esdrúxulo, dissonante”. No soneto em pauta, há dez proparoxítonas: incógnitas, psicogenética, moléculas, encéfalo, tísica, tênue, mínima, raquítica, centrípeta, paralítica. Independentemente, ou em paralelo ao sentido dos termos, de tais palavras (dado o esforço requerido para sua pronúncia e dado que representam parcela pequena e mesmo rara das palavras de nossa língua) emana, ainda segundo o crítico berlinense, um “efeito encantatório”. Sensação semelhante aponta Luiz Costa Lima, destacando que o encanto pode se produzir inclusive pelo não entendimento do vocábulo:
Augusto dos Anjos atraiu o público não intelectualizado justamente pelo vocábulo difícil, áspero, longo, incompreensível sem a ajuda de bons dicionários, vindo a sombra melancólica do poema oferecer o condimento necessário para a recepção daquele.
Sem dúvida, no caso de Augusto, essa atração se dá pelo som, não somente das excêntricas proparoxítonas, mas das rimas e de todo um conjunto de — sobretudo — aliterações que, em A ideia, de maneira isomórfica, acompanham o movimento da “matéria bruta” até à “língua paralítica”.
Tal movimento é explicitado com clareza no excelente artigo Augusto dos Anjos: um Eu em conflito, de Guaraciaba Micheletti e Alessandra Ignez (2014, revista Matraga n. 35). Com profusão e precisão de exemplos, as autoras mostram que “as dificuldades, as agruras por que passam a ideia e o poeta refletem-se em um estilo duro, bruto no que tange à sonoridade do poema, sugerindo uma luta interior, uma busca”. Desde as verticais estalactites à horizontal língua paralítica, passando pela dança dos sinais (que começa com uma retumbante“?”; se espanta e mistura em “?!”; perde força com as vagas “…”; mas finaliza com um peremptório “!”), tudo importa no poema. Decerto, cada palavra tem seu uso pensado e pesado. A despeito de não se saber com exatidão as fontes com as quais o poeta teve contato para elaborar seus “poemas científicos”, alguns estudos mostram o impressionante e atualizado conhecimento que Augusto dos Anjos possuía em relação aos exóticos, enigmáticos, quase herméticos termos que usava à exaustão.
Há um artigo escrito por cinco autores, todos da UFMG, com formação em neurologia e psiquiatria, com o título A poética de Augusto dos Anjos e a neuropsiquiatria no fin de siècle, publicado em 2018 na conceituada revista História, Ciências, Saúde — Manguinhos. Deveras esclarecedor, o artigo afirma que
A escolha vernacular de Augusto dos Anjos, plena de termos científicos, e sua visão das perturbações da psiquê como advindas da atividade cerebral disfuncionante parecem subscrever o poder da medicina alienista, com seu vocabulário técnico, sua normatização da vida mental e sua patologização dos fenômenos mentais.
Quanto ao poema em tela, A ideia, os autores confirmam a pertinência, a correção e a coerência dos termos apropriados pelo poeta no soneto: Augusto “concebe o pensamento e a linguagem como resultantes de um processo biológico cerebral coordenado (“Vem do encéfalo absconso que a constringe/ Chega em seguida às cordas da laringe”). Nesse aspecto, a poesia anjelista dialoga com os avanços científicos do seu próprio tempo, pois datam das décadas finais do século 19 e do início do 20 os trabalhos seminais que estabeleceram claramente a relação entre funções mentais (por exemplo, a linguagem) e substratos neuroanatômicos específicos” (em tempo, o artigo é assinado por Leonardo Cruz de Souza, Ana Carolina Salgado, Maurício Daker, Francisco Cardoso e Antônio Teixeira).
Seja, pois, alvo de cerrado close reading, seja alvo de uma avaliação da área biomédica, o poema e a obra de Augusto dos Anjos, nada angelicais, resistem. Com ou sem glossário que forneça acepções acerca do vocabulário utilizado, o poema agrada, seduz, espanta. Nem sempre, contudo, a “exogamia linguística” (Rosenfeld) se impõe. Muitos, muitíssimos poemas clássicos do poeta (advogado por formação) não trazem nenhum termo ininteligível, como em Versos íntimos, cujos tercetos finais impactam a cada leitura:
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Aqui, se manifesta outro traço dessa bizarra poética: o mau gosto, que afronta o hegemônico senso comum das imagens e palavras bem comportadas, previsíveis, domesticadas, banais. A putrefação (“podre meu pai”), “O Deus-verme”, coveiros, morcegos, trevas, cemitérios, aberrações, túmulos — eis um mundo em torno do qual gira o imaginário dessa “singularíssima pessoa”, tão singular que Maria Ester Maciel, em dissertação defendida em 1990, lhe reserva (à obra) o conceito de “atopia”. A propósito, em Budismo moderno, tornado música por Arnaldo Antunes (com som de serrote ao fundo), lemos uma quadra absolutamente encantatória e atraente (para retomar termos de Rosenfeld e Costa Lima), a despeito das palavras esquipáticas e, parece, constrangedoras:
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
Apesar de uma sólida e consistente fortuna crítica acerca de sua obra, ainda há de Augusto dos Anjos deslumbrantes poemas completamente esquecidos. Não é o caso de A ideia, sobre o qual uma rápida pesquisa na internet pode listar (além dos já citados) um conjunto bem razoável de interpretações, que decifram cada um dos termos mais cabulosos, mais obscuros: nebulosas, criptas, estalactites, psicogenética, moléculas, encéfalo, absconso, constringe, laringe, tênue, centrípeta e afins. Mas qualquer leitura que se dedique ao poema, sem temor pelo diferente (como quem lê Guimarães Rosa, por exemplo), há de perceber que se trata de uma reflexão — via versos — acerca da dificuldade ou mesmo da impossibilidade de uma “ideia”, que pertence ao reino do abstrato, ganhar uma representação literal, mimética, exatamente daquilo que foi concebido mentalmente. Por isso mesmo, em famosa frase, Mallarmé teria dito ao amigo pintor Degas: “um poema não se faz com ideias, mas com palavras”. Sim, a “ideia em si” (feito um sonho difuso) é mesmo irrepresentável. Mas falar da irrepresentabilidade da ideia — e de qualquer outro conceito, sentimento ou objeto — é, sim, o que qualquer linguagem pode realizar. E foi isso exatamente o que realizou Augusto dos Anjos: driblando o “mulambo da língua paralítica”, deu forma à coisa “quase morta”, com engenho e arco. E o fez de modo nada raquítico, mas superlativo — augusto. Augustíssimo!