O Deus das crianças

Um vídeo de pai e filha cantando um sucesso popular constrói caminhos afetivos entre a infância e a vida adulta
Ilustração: Oliver Quinto
14/09/2024

Antes a escolha do plano, da luz, da pose, de cada detalhe, era prévia. A razão, essa danada, estava no bolso. Tínhamos o máximo rigor já no instante de fotografar porque o filme custava caro. A revelação, mais ainda. Desde que as câmeras migraram para os celulares, a ordem das coisas mudou. A gente simplesmente senta o dedo no clique e depois, se der, é que seleciona as imagens para a posteridade.

Nossas galerias viraram uma barafunda que junta aquela incrível foto em plongée de Machu Picchu com retratos tremidos feitos na pista de dança, após três caipirinhas e cinco cervejas. Mas a memória do telefone, assim como a nossa, trabalha com limites. E quando chega o aviso sobre a iminente falta de espaço, é preciso aniquilar parte da história acumulada.

Foi o que fiz na semana que terminou. Por quase uma hora, eliminei os bytes que traziam lentidão ao aparelho e impediam o armazenamento de arquivos novos. A lixeira, depois esvaziada, recebeu prints inúteis, vídeos mal ajambrados e fotos cujo contexto se perdeu. Um processo de depuração que trouxe, como efeito colateral, a imersão no passado recente. Aquele x-tudo temperado de alegria, dor e aleatoriedades.

Mas a dor não some ao apertar o botão delete e quanto às aleatoriedades, bem, o vocábulo se basta. Então falemos de alegria. Das imagens de Lia com a boca suja de sorvete de açaí, dando os primeiros passos, cantando Seu Lobato enquanto o balanço refaz o movimento da vida. Nossos concursos de careta e as dancinhas ridículas da época em que ela ainda não conhecia a palavra vergonha.

Quando a triagem estava próxima do fecho, com a graça do espaço livre enfim alcançada, me deparei com um curto vídeo que fizemos durante a pandemia. São pouco mais de dois minutos. Ao piano, manejado em todo o meu mau jeito, toco a música Fico assim sem você, sucesso do repertório de Claudinho e Buchecha. Lia tenta acompanhar com a voz. Erra a entrada, reclama que confundi os versos, me corrige.

“Avião sem asa/ Fogueira sem brasa/ Sou eu assim sem você”, canto olhando para ela, que hesita entre mirar meu rosto ou câmera do celular. “Futebol sem bola/ Piu-Piu sem Frajola/ Sou eu assim sem você”, a letra segue e, aos poucos, se dá o encaixe. O que era discrepância, embate entre verso e melodia, transforma-se em coesão. Há, claro, o desafino de um e de outro, mas tudo passa a soar insolitamente harmônico.

Menos o tempo, que salta com fúria e expõe seus vestígios. Os dentes de leite, a voz que ainda procura o tom. Uma camisa que ela adorava e hoje veste outra criança.

Salvei o vídeo no drive e, ao terminar a limpeza dos arquivos, compartilhei no Instagram. Várias pessoas curtiram, algumas comentaram. Então recebi uma notificação. Referia-se ao post que acabara de ser feito pela crítica gastronômica Constance Escobar. Fui checar na mesma hora. A foto expunha um manuscrito. Em caligrafia miúda e bem desenhada, estava a letra de Mané Fogueteiro.

Sim, a canção composta por Braguinha que estourou nas paradas em 1934 com Augusto Calheiros e mais tarde seria regravada por Maria Bethânia. “Lá pelos meus seis ou sete anos de idade, meu pai tocava essa música no violão, enquanto eu cantava com ele, sentada no sofá”, relata Constance no tal post. Uma lembrança que, logo eu descobriria, reacendeu dentro dela após ver o vídeo em que dueto com Lia.

Constance conserva esse manuscrito desde bem jovem. E conta que foi dado ao pai dela — ninguém menos que o compositor Guinga — pelo tio-avô. Um dos comentários no post é do próprio Guinga: “Ele vendia pipas. Homem pobre e educado. Usava uma peruca à la Chico Xavier. Baden [Powell] tocava e eu cantava com ela essa maravilha dentro do laboratório de prótese da Clínica Dentária Grajaú”.

Chiquinho, o tio-avô, registrou a letra naquela folha há quase seis décadas. Constance surrupiou o papel, o pai talvez nem soubesse dessa doce travessura até se ver marcado no Instagram. Talvez ignorasse, igualmente, que aqueles momentos prosaicos junto à filha ficariam marcados a ferro, como uma inscrição de amor. “Às vezes acho que minha memória primordial dele será sempre essa, mais do que ele entoando algumas de suas composições”, ela supõe.

O Mané Fogueteiro era o Deus das crianças e, em dia de festa, fazia rodinhas, soltava foguete, soltava balões. Gostava da Rosa, a cabocla mais linda do mundo, e essa paixão acabou por levá-lo à morte. O fim trágico do personagem da música, como seria também o de Claudinho, um dos cantores de Fico assim sem você, diz pouco, quase nada, sobre a outra história que ajudou a escrever — e que uma faxina virtual fez luzir, inesperadamente. Os cinco anos de Lia, agora nove; os seis ou sete de Constance, vistos no retrovisor dos mais de quarenta. Tão distantes, tão próximos. As idades todas guardadas numa só.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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