“O que escrevo é para ser confundido com aquilo que sou”

Entrevista com Paulo Sandrini
Paulo Sandrini: longe do realismo fácil
01/12/2003

• A chamada “Geração 90” caracteriza-se, entre outras coisas, pela tentativa de abraçar a realidade, absorvendo-a para dentro da literatura, tentando dar sentido a ela, questionando-a. O texto sintético impera, numa proximidade com o jornalismo, a publicidade e a internet. Você trilha um caminho contrário: opta pelo mágico, pela fabulação, por um rebuscar na linguagem. Por quê?
Há variadas formas de questionamento da realidade dentro da literatura, mesmo porque é recorrente, em literatura, o questionamento da realidade, o questionamento de uma época e seus valores, independentemente se isso se dê de forma realista, naturalista ou fantástica. Se a literatura não faz espécie alguma de questionamento, torna-se perfumaria, esteticismo puro — sem conflito não dá. Aí estaríamos fazendo uma arte, vamos dizer, otimista, literatura de auto-ajuda ou de entretenimento. Quanto à minha opção de linguagem fugindo ao texto sintético, talvez seja por um problema com esse imediatismo típico de nossa época, de tudo rápido, fast food. E também porque já fiz muito texto publicitário, o que me afastou naturalmente desse texto mais sintético em literatura, o que não me impede de fazê-lo em outro momento. Já essa opção pelo mágico, pela fabulação, surgiu em decorrência de uma necessidade de engendrar metáforas utilizando-me de alguns símbolos que pudessem dar mais densidade ao texto. A crueza do realismo próximo à linguagem jornalística, por exemplo, não me proporcionaria esses artifícios que julguei necessários para compor este trabalho em específico.

• Em seus contos, há um constante clima de batalha (a luta do homem para conquistar um espaço). Você considera essa luta/tensão a propulsão para a arte literária?
Discorrer sobre a divisão (e não a conquista) do espaço seria utópico e inverossímil diante dessa realidade em que cada qual defende o seu quinhão. Contos como Na manda, fora dela, Dr. Onagro, Baixinhos invocados ou Sobre o inimigo: sobre nós mesmos têm, realmente, esse clima de batalha, da conquista do espaço. O individualismo é a semente mais duradoura que a ditadura plantou em nós e que ainda não foi desenraizada, e pior: agora esse individualismo está sendo corroborado ainda mais com a idiotice e os equívocos do discurso neoliberal. Só não somos passivos quando mexem no nosso quinhãozinho. É isso o que querem de nós. Que nos matemos pelo que é “nosso”. Agora, se considero essa luta/tensão a propulsão para a arte literária, afirmo que, para o meu caso em específico, sim. É a única metralhadora que consigo disparar. Que fique claro que falo por mim.

• Como é dedicar-se à literatura na autofágica Curitiba, longe dos ainda concentradores mundos do Rio e São Paulo?
Nunca achei ser um requisito básico viver num grande centro para poder problematizar o mundo, enxergá-lo ou simplesmente vivenciá-lo em muitos de seus reveses, que é o que gera a minha literatura. A autofagia de Curitiba é somente mais um desses reveses, o que sugere bons motes. Contudo essa autofagia composta sobretudo de mediocridade, conchavos, sacanagenzinhas e falsos elogios é típica de qualquer lugar. Em São Paulo e Rio pode ser até pior porque lá se concentra um maior número de pessoas. Sei lá. Sou do interior. Minha visão de mundo não foi formada observando largas avenidas, shoppings centers ou fazendo parte do establishment cultural da nação que se concentra nas grandes capitais. O que não me impede de rir da autoconfiança e do nariz empinado dos seres metropolitanos.

• Você faz parte de uma geração de escritores que inicia o novo século literário. O que se pode esperar desse, digamos, grupo?
Muita divergência. Muita afinidade. Muita falsa afinidade. Muito idealismo. Muita alienação. Literatura humanista, com visão de mundo. Literatura inútil, corroborando o establishment e o arrivismo no meio cultural. Autofagia. Reconhecimento do talento alheio sem segundas intenções. Literatura que não seja moeda de troca. Literatura como fator de transformação cultural numa nação de analfabetos, em que a televisão (como aconteceu recentemente) se autoproclama a maior contadora de histórias da atualidade. Literatura para ser discutida tomando coca-cola ou sukita. Literatura placebo. Literatura quimioterápica. Literatura para se erigir shoppings centers. Literatura para implodir world trade centers. Literatura do caos. Literatura de ordem e progresso. Literatura anêmica, taxidérmica. Literatura anímica. Enfim, dá pra se esperar de tudo. Cada qual com seu cabedal.

• Com o que se preocupa a sua literatura?
Levando em consideração que sou um ser dotado de fala, criado na linguagem (independentemente de ser a linguagem oral ou escrita), e por isso mesmo um ser vivo social, minha fala, pois, me marca enquanto sujeito. Apenas existo enquanto “ser” pelo motivo mesmo de “estar” no social. É aqui que me crio e por isso a minha preocupação é com o humano e tudo que a ele diz respeito. A realidade que me cerca, não apenas me cerca, está também dentro de mim, não há como fazer “sobrevôos” na minha realidade ou no meu pensamento. O que escrevo, ou pelo menos tento, é para ser confundido com aquilo que sou.

• Você se mostra um autor que, mesmo neste início, afasta-se dos grupos literários. Por que esta opção e qual a sua opinião sobre a “Geração 90”?
Nunca pensei em termos de afastamento ou aproximação de grupos literários. Física ou esteticamente. Acho também que se o meu trabalho tiver algum valor, tem de falar por si só e não por eu fazer parte deste ou daquele grupo. O que não impossibilita jamais o diálogo com os escritores da minha geração e de outras se esses acharem que têm algo a ouvir de mim ou a me dizerem. Nesta questão entra também aquela questão de ser ou não aceito por grupos, o que me cheira à adolescência, quando a gente se veste como todo mundo para ser aceito, eu acho que me sentiria assim, bastante pueril até, forçando entrada em qualquer grupo que seja. Pensando bem, nunca fui mesmo de pertencer a grupos. Na literatura creio que não será diferente. Acho também que muita aproximação, tende a acabar em desentendimentos desnecessários. Convivência demasiada implode as relações. É natural do ser humano a vaidade e o egoísmo aflorarem à certa altura. Mas, falando da “Geração 90” (se você se refere ao trabalho do Nelson de Oliveira), vejo aqui um esforço em se fazer uma amostragem de um período fértil da literatura nacional, visto que contistas surgem, com os mais variados sotaques, de todos os lados e é necessário representar isso de algum modo. Da parte do Nelson, só vejo boas intenções; além de escritor ele vem fazendo um árduo e desafiador papel de agente cultural. No geral, englobando aqueles que fazem parte das duas coletâneas do Nelson e também aqueles que não fazem, sinto que há, sobretudo, uma busca por linguagem, por singularidade, na maioria dos escritores. Todos tentam sair pra tomar fôlego, tendo consciência de que somos todos peixes num rio que muitos já consideram sem oxigênio: o rio da literatura.

• O conto brasileiro passa por uma excelente fase ou estamos vivendo apenas uma onda passageira?
A meu ver, o conto passa apenas por mais uma fase. Uma fase que parece mais prolífera que as anteriores porque temos a internet como canal de expressão, como canal diálogo para esta geração. Os contatos são praticamente instantâneos e isso dá grande estímulo a quem está nessa de escrever. Mas também há nisso uma falsa ilusão: o simples fato de estar sendo lido na internet não significa que você ganhou um lugar ao sol ou que tenha qualidade, apesar de haver casos com desfechos felizes. Literatura é sobretudo um trabalho de fôlego, mesmo que seja com o conto, e só mais adiante saberemos quem veio para ficar e se a coisa toda foi ou não passageira, salvo raros casos, na minha opinião, como Amilcar Bettega Barbosa, Marcelo Mirisola e um cara chamado Guilherme Scalzilli (que é muito bom e ninguém fala), coloco ainda Marcelo Benvenutti, Rogério Ivano e Karen Debértolis como escritores da minha geração nos quais apostaria minhas fichas se fosse um jogador. Acredito muito também em caras como Ferréz.

• Quem são seus pares literários? Que autores habitam sua biblioteca?
Não sei catalogar muito bem minhas influências, acho. Nem sei quem são meus pares. Mesmo porque nunca procurei definir isso de pares e influências. Se leio algo que me transforme o mínimo, me faça problematizar coisas que eu nunca havia problematizado já me serve de influência; então a todo instante corro o risco de estar sendo influenciado. Sei que não faço minhas escolhas de leitura por estilo, período ou gênero. Procuro ler sempre os clássicos e alternar com escritores contemporâneos. Vou de Gogol a Mia Couto. De Kafka a Houellecbeq. De Dostoievski a Georg Oswald. De Guimarães a Karam. De Campos de Carvalho a Nelson de Oliveira. De Mário de Andrade a Valêncio Xavier. De Graciliano a Marçal Aquino. De García Márquez a Miguel Sanches Neto. De Lugones a Mirisola. De Swift a Jamil Snege. De Cortázar a Luiz Ruffato. De Saroyan a Luiz Vilela. De Joyce a Piglia. Coloco ainda Cioran e Leonardo Boff como referências fora da literatura Ainda faltam muitos. Sempre faltarão.

• Como é o seu método criativo?
Primeiro, é me sentir incomodado com alguma coisa. Só escrevo sobre o que me incomoda. Depois, procuro os pontos vulneráveis dessa “coisa”. Tenho que ter tudo na cabeça. Não vale bloquinho de anotação. Depois parto para escrever. Dou um tratamento todo especial ao primeiro parágrafo. Ou melhor, às três primeiras linhas, que é onde se pega ou não o leitor, ao meu ver. Defino o ritmo já no início. Mais para o meio, às vezes acelero um pouco. Às vezes tiro o pé do acelerador, isso nos contos mais longos, nos curtos já procuro dar um golpe em cima do outro, não dá para perder tempo, senão o nocaute não acontece. Não tenho o costume de reescrever. Por isso demoro bastante em cada trabalho. Depois, vou fazendo somente as correções, tirando os possíveis equívocos e incoerências, aparando arestas. Mas nada muito organizado. Fico dias sem escrever. Mudo o rumo das coisas no meio do caminho. Quando acho que terminei, esqueço do texto por dias ou meses. Então faço mais uns ajustes se achar que vale a pena ou então me desfaço do texto (é o que acontece com a maioria deles).

• Paulo Sandrini tem o estranho hábito de dormir em pé?
Estaria sendo desonesto se dissesse que não. Tudo o que escrevo também é fruto da autocrítica. Me encaro sempre diante do espelho e vejo coisas que eu não gostaria de ver. Sou ambivalente. Ao mesmo tempo amo e odeio as coisas. Sou humano e em seguida me bestializo. Abraço e dou coices. Sou altruísta e em seguida o maior egoísta do mundo. Morro de amores pela humanidade, mas quando me deparo com o indivíduo (a maioria deles) vejo que não vale a pena, pois enxergo o carrasco potencial ou o escravo potencial, quando não o carrasco em ação e o escravo oferecendo o lombo ao látego.

LEIA RESENHA DE O ESTRANHO HÁBITO DE DORMIR DE PÉ

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho