Entrevista com Mario Sabino

Entrevista com Mario Sabino
Mario Sabino: filosofia, religião e literatura
01/03/2004

• Você considera a literatura a arte da infelicidade, assim como diz o protagonista de O dia em que…: “acho que a literatura é a arte de confirmar a infelicidade humana aos que já são propensos a ser infelizes”?
Sim, essa também é a minha visão. A literatura é a arte da infelicidade, mas cabe a cada escritor, evidentemente, encontrar um meio original de expressar as suas angústias. Parafraseando Tolstoi, em Ana Karenina, todos os maus autores são parecidos em sua felicidade, mas os bons têm de ser infelizes a seu modo.

• Hoje em dia — mesmo com a vulgarização da violência — matar o pai ainda causa certa comoção, dependendo muitas vezes do nível social em que tal crime seja cometido. O título de seu livro chama a atenção pela maneira direta com que anuncia o conteúdo. Que aproximações podem ser feitas deste mote literário com a realidade?
Não acredito que um crime capital como o parricídio venha a passar despercebido algum dia, independentemente de ser cometido por um rico ou um pobre. Tanto é assim que, quando ele ocorre, causa muita, e não certa, comoção. Isso porque ele mexe com forças arcaicas e arquétipos poderosos, como demonstra Sigmund Freud, o pai da psicanálise, em Totem e Tabu. Aliás, a idéia de escrever O dia em que matei meu pai surgiu depois da leitura desse que considero um dos ensaios mais brilhantes de Freud. Do ponto de vista dele, para resumir, a civilização foi fundada com a morte ritual de um pai. Uma idéia atordoante e estimulante.

• O protagonista de Futuro é “um sujeito, que gostaria de ser alguém na vida e depara com obstáculos intransponíveis”. Quais são os obstáculos intransponíveis da/para a ficção?
Não acho que existam temas que não possam ser abordados pela ficção. É isso que a torna tão fascinante. Não há tabus para um escritor.

• Por que decidiu escrever um livro, já que você não tem cor de geléia [esta é a razão apresentada pelo autor de Futuro]?
Por achar que tinha algo a dizer com meu romance. E esse fato é que nenhuma idéia, nenhum sistema filosófico, é capaz de dar conta da bestialidade humana. Meu personagem parricida é capaz de esgrimir conceitos psicanalíticos, filosóficos, científicos, literários, para tentar justificar seu crime, mas todos eles são encobridores. Não há revelação no seu conhecimento, apenas dissimulação.

• Nas entrelinhas de seu romance, percebe-se claramente uma crítica à intelectualidade brasileira. Qual a sua avaliação dos, digamos, intelectuais nacionais, seja na Universidade, na imprensa, nas panelinhas etc.?
Abandonei a pós-graduação em literatura italiana na Universidade de São Paulo depois de descobrir que meu orientador havia lido menos do que eu. E olhe que eu só tinha 26 anos e minha formação intelectual tinha e continua a ter grandes lacunas. Acho que isso responde à sua pergunta.

• De que maneira as mentiras literárias podem ser alicerce da verdade ou da realidade?
Não sei o que é mentira literária, assim como não sei o que é verdade literária. Mas acho que a literatura, de modo geral, só pode aspirar a revelar o quanto somos insignificantes, mesquinhos e sem transcendência.

• Qual a sua opinião sobre a imprensa cultural brasileira, tão afeita às amizades ocasionais e ao cabotinismo exacerbado?
Essa é uma avaliação sua, que fique bem claro. Correndo o risco de parecer exacerbadamente cabotino ou ocasionalmente amigo, prefiro não emitir opinião.

• O protagonista de O dia em que… diz que só tem escuridão a oferecer. A literatura é capaz de oferecer algo mais do que escuridão e algumas réstias?
Como já disse, a literatura deveria servir apenas para mostrar que somos todos bem menores do que imaginamos. Quando atinge esse objetivo, acredito que a literatura pode ser razoavelmente iluminadora.

• De que maneira a psicanálise ajudou ou atrapalhou na construção de seu romance?
Ela ajudou, evidentemente. Já disse isso antes, e não encontraria outra maneira de fazê-lo: a psicanálise é uma aventura intelectual das mais interessantes porque seu método implica a construção de uma narrativa pelo paciente, na qual o analista é autor coadjuvante. Essa elaboração de uma narrativa a torna muito similar ao processo literário. A narrativa tecida na psicanálise serve para colocar em ordem alguns fatos de sua vida e estabelecer relações entre eles, dando sentido às manifestações neuróticas de que padece o paciente. Em geral, quando se encontra um sentido para essas manifestações, elas tendem a amainar. Mas dar um sentido não significa, necessariamente, contar toda a verdade. É apenas uma verdade (a do paciente) que, aos olhos dos outros, pode soar como simples ficção. Como mera literatura. Trata-se de um exercício bastante interessante para um escritor.

• Sobre a crítica literária, o protagonista de O dia em que… declara que é “a arte de dizer nada dando a impressão de dizer tudo”. Para você, a crítica literária tornou-se um amontoado de palavras sem sentido para despistar a esqualidez da atividade, principalmente na imprensa?
Acho que a frase do livro expressa bem a minha opinião, embora deva reconhecer que há oásis nessa paisagem esquálida.

• O seu romance tem referências diretas a Dostoievski, Montale e Sófocles. Que outros autores habitam o seu imaginário e a sua biblioteca?
Alberto Moravia, Paul Auster, Flaubert, Emily Brontë, Eça de Queiroz, Leopardi, Dante — esses são os nomes que me ocorrem no momento.

• Matar o pai é um bom motivo para ir ao inferno ou pode ser motivo de salvação?
Do ponto de vista psicanalítico, repito, o parricídio simbólico representa a salvação. Mas não é fácil superar um pai. Pode ser motivo de extrema angústia, como dizia Freud, e é por esse motivo que muitos não se atrevem ou, por mais que tentem, não conseguem.

• O seu nome não aparece ligado a nenhum grupo literário. Você “só estréia” na literatura aos 42 anos. A pressa na literatura também leva ao desespero?
A pressa na literatura só leva à má literatura. O desespero, nesses casos, fica reservado ao pobre do leitor.

• Qual a sua opinião sobre a nova geração de escritores, esta que surge sobre a alcunha de Geração 90?
Não tenho nenhuma opinião exatamente original a respeito desse assunto. O que posso dizer é que falta narrativa à atual literatura brasileira. Esqueceu-se que o papel primordial de um escritor é contar bem, ou apenas de maneira suficiente, uma história, qualquer que seja ela.

• Como foi o processo de construção de O dia em que…?
Trabalhei no livro de janeiro a agosto de 2003. Uma parte já havia sido escrita quanto eu contava 27 anos. Como sou editor de texto há 20 anos, já ia cortando e limpando à medida que escrevia.

• De que maneira a atividade como jornalista atrapalha ou ajuda a tecer a ficção?
Ajuda justamente porque você aprende a eliminar o desnecessário sem dó nem piedade e também porque comprime o tempo, já que se trata de uma atividade que consome a maior parte do seu dia. Com menos tempo livre, você tem de ser mais preciso nas horas que lhe restam.

• A humanidade tem salvação?
Não estou interessado nessa abstração positivista chamada humanidade. Deixemos a humanidade para os tiranos e os demagogos. Só sei que eu não tenho salvação. É por isso que escrevo.

LEIA RESENHA DE O DIA EM QUE MATEI MEU PAI

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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