Francesco de Roma

Um documentário sobre Chico Buarque em Roma ficou apenas no roteiro adormecido num escaninho de hard-disk
Ilustração: Marcelo Frazão
07/08/2024

Há cerca de dez anos li na internet, por acaso, um discurso de Chico Buarque feito diante do prefeito de Roma. Foi durante a entrega do prêmio Roma-Brasília, Cidade da Paz, outorgado a ele em 18 de junho de 1997.

Tinha oito anos em fevereiro de 1953, quando desembarquei em Roma com minha mãe e tantos irmãos. Meu pai já estava aqui há alguns meses, como professor de Estudos Brasileiros. Recordo-me de que era já noite funda quando entramos no palazzo da Via San Mariano, que papai nos tinha descrito nas suas cartas…

O texto oferecia um vislumbre cativante da estreita ligação do compositor brasileiro com a Itália.

…e eu corria em bicicleta pelo Viale Gorizia, brincava com novos amigos, aprendia belas palavras, como calcio di rigore, rovesciatta, Sampdoria, Sentimenti IV, e palavrões que ensinava às minhas irmãs.

Poucos dias depois, reuni-me com meu filho Leonardo, roteirista, e juntos elaboramos um script baseado naquela memorável prédica romana. Nosso filme teria o discurso narrado por Chico em off, entremeado por imagens da Cidade Eterna nos anos 1950. Incluiria também depoimentos de amigos, parceiros, jornalistas e críticos musicais.

…Papai tinha também uma professora de italiano, e eu me lembro bem do dia em que a apresentou à família, mais ou menos com o mesmo orgulho com que tinha nos introduzido naquele palazzo frio, empoeirado e meio arruinado. A signorina, porém, era muito jovem, viçosa, luminosa, a pele muito clara, os cabelos muito negros, os olhos enormes, e ao olhá-la compreendi logo a palavra desiderio…

Apresentamos o argumento a uma produtora de cinema paulistana e, posteriormente, nos reunimos com um representante do artista.

…Em janeiro de 1969, quando voltei a Roma, reencontrei os monumentos, os palazzi, as fontanne, os viali, tudo ali, tudo igual às minhas recordações, somente um pouco menor. Nesta cidade vivi ainda um ano e meio, e aqueles não podiam ser os tempos mais felizes da minha vida. Mas com o consenso de Roma, nela vivi um tempo que, em outra parte, talvez teria sido invivível…

Infelizmente, nosso documentário Francesco de Roma não prosperou. Por razões pessoais de Chico à época, acabou adormecido num escaninho de hard-disk.

…em Fiumicino, o policial olha e torna a olhar cada folha do meu passaporte, sacode a cabeça, procura o meu nome no computador, chama alguém pelo telefone… Giro agora pelo aeroporto que não recordava tão grande. Depois de 30 anos o ampliaram, sem dúvida, mas é possível também que com o tempo os objetos da memória comecem a comprimir-se, como se estivessem dentro de um ônibus superlotado. Quando consigo pegar minha maleta, que rodava também solitária no aeroporto, me vejo diante de uma jovem com um sorriso que me é familiar. É uma signorina tão viçosa, tão luminosa, com a pele tão clara, os cabelos tão negros, os olhos tão grandes, que poderia ser uma professoressa de italiano. Mas, ao contrário, é a agente de turismo que me pergunta “May I help you?”. “No grazie”, le dico, “il mio nome è Francesco”.

Hoje, lendo seu novo livro Bambino a Roma (que tem o discurso de 1997 como essência), não pude deixar de pensar: “ma perché cazzo, Chicco, non hai voluto fare questo film con noi?”.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

Rascunho