Educação de cabine

Se você é uma pessoa minimamente educada e pensa no bem comum, viajar de avião é deparar com a barbárie
Ilustração: Oliver Quinto
06/08/2024

Às vezes ouço falarem mal da sala de aula, da escola básica, da escola pública, também da escola privada, onde imperaria a falta de limites. Ouço falarem mal da meninada do ensino fundamental, da falta de educação generalizada, da agressividade, da tosqueira, da coisa atabalhoada, da falta de disciplina, da grosseria, das interações truculentas, da bagunça, da falta de respeito com autoridades etc. Mas quem acha isso da sala de aula… É que não viu ainda o que é um avião.

Imagine um ambiente em que as pessoas, majoritariamente adultas, entram depois de uma disputa entre si em filas desarranjadas, uma disputa contra os atendentes a respeito de bagagens e documentos, depois de fingirem quase todos que não escutam as regras do jogo. Daí, quando conseguem entrar na cabine, disputam assentos como se eles não fossem numerados, jogam malas por cima das cabeças dos outros, deitam suas bagagens de um jeito que ocupa o espaço de duas, além, claro, de fingirem não ouvir que mochilas e sacolas menores devem ser postas embaixo do assento à frente, para que, obviamente, não ocupem o espaço de malas maiores de rodinhas no bagageiro de cima.

Uma pessoa minimamente educada e que pensa no comum entra no avião e sofre todo tipo de violência desse tipo. E isso já era assim, mas desde que as companhias aéreas e a agência nacional resolveram cobrar pelo despacho de qualquer coisa, alegando que os preços dos tickets seriam reduzidos (alguém viu isso acontecer algum dia?), a disputa entre bárbaros por um lugar no bagageiro da cabine se transformou em um caso de ringue.

Com razão, há quem discuta duramente com as comissárias de bordo (as pessoas costumam ser mais corajosas com mulheres…) que tentam arrancar as malas de mão e levá-las ao porão da aeronave, quando o espaço lá em cima acaba. No entanto, se olharmos bem, a bagagem até cabe, se os coleguinhas não tivessem posto suas mochilinhas minguadas de gerentes médios de empresas meia boca no espaço das malas maiores, como já dito. E o que acontece? Ninguém escuta a treta. Ninguém faz nada. Ninguém se levanta para retirar a bagagem do lugar errado. Ninguém quer viajar com os pezinhos apertados embaixo do assento à frente. Ninguém é minimamente gentil ou sensato, vá lá, numa situação como essas. Muitos continuam com seus fones sem fio enfiados nas orelhas, fingindo não saber o que se passa com quem está injustamente sem espaço. A sala de aula é fichinha. É na cabine do avião que papais e mamães, vovôs e vovós, mostram suas caras sonsas, as mesmas que vão exibir valentes nas reuniões com a diretora, pedindo mais disciplina e mais senso de colaboração no colégio.

Na escola, é possível que as filas sejam mais organizadas e até divertidas, que a moçadinha se coordene mais ou menos autonomamente, que os pertences sejam postos onde é devido, que dê tempo de dizer tchau quando é hora de sair. No avião, não. Na hora que o bichão toca os pneus do trem de pouso no chão, uma horda furiosa se levanta imediatamente, disputando o corredor central como se fosse ali uma guerra, e como se lá fora estivesse alguma salvação. De novo, passam malas sobre as cabeças uns dos outros, empurram-se, fingem não escutar os comandos das comissárias e dos pilotos, não estão dispostos a se lembrar de nada do que aprenderam na escolinha. Não deixam pessoas passarem à frente, trombam-se, e tudo por nada. Bem, vão se trombar de novo naquela esteira horrorosa onde as malas despachadas são jogadas.

Interessante que pensei que a pandemia fosse deixar algum legado, digamos, positivo, em relação ao cuidado com os outros. Houve gente, lembro bem, que disse que a humanidade aprenderia muito e melhoraria com a experiência trágica que tivemos. Já não acho, claro. Um legado “positivo” seria aquela ordem bacana para sair do avião, por números de assentos, quando todo mundo parecia ter aprendido a fazer as coisas com calma e educação. Outro legado seria não ir a reuniões ou dar aulas, ou qualquer coisa que envolva muita gente, quando se está gripado. Ou usar máscara, em caso de suspeita de doença transmissível. Tsc, qual o quê! Ninguém aprendeu nada. Os gripados andam à solta, espirram sem cerimônia, e os sem educação se esbaldam dentro das cabines de avião, mesmo as passagens estando três vezes mais caras hoje do que eram antes. Ou seja, a questão não passa pelo dinheiro. Não sei onde está a educação, mas possivelmente não é coisa que vem de berço, como dizem por aí.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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