Estou sozinho no mundo

Não é rara a vida de uma pessoa que vai esbarrando nos livros, e com eles vai moldando seus caminhos
Ilustração: Thiago Lucas
02/08/2024

Aos catorze anos, em Curitiba, entrei no grupo de teatro da Escola Técnica. Nessa idade, eu ainda não tinha sido tomada pela introspecção que marcaria o resto da minha adolescência. O teatro me seduzia: declamar, apresentar-se, o gozo de falar em público. O diretor do grupo tinha alguns espetáculos de repertório, e naquele ano montava uma espécie de jogral com poemas de Pessoa, Brecht e Drummond. Um fundo de crítica social amarrava o conjunto. Um dos poemas declamados era A bruxa, de Drummond:

Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América…

Os versos eram adaptados para ressoar melhor no teatro. Algumas estrofes eram recitadas em coro, alternadas a momentos em que os atores mais experientes adiantavam-se para solos. Iniciante, fiquei no coro. Dizíamos, juntos: “Nesta cidade do Rio de Janeiro, de dez milhões de habitantes…”. O diretor sugeriu que o nome completo da cidade teria melhor efeito. E a população foi ampliada, para ficar mais próxima à realidade dos anos 1990. Acho também que dizíamos “estou sozinho no mundo”, em vez de na América.

Depois da primeira estrofe, um colega avançava e falava em tom macio:

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto…
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que leem verso de Horácio…

Foi o diretor quem resumiu o poema. Cortou a segunda estrofe — que apresenta a enorme mariposa preta (a bruxa), na “zona de luz”. Escolheu somente alguns versos, que serviam de introdução a José; esse poema sim, na sequência, era declamado por inteiro.

A peça foi apresentada numa temporada curta — sextas e sábado à noite, se me lembro bem — e me senti importante. Era uma escola federal; o diretor, um artista reconhecido na cidade. Aos catorze anos, agora conhecendo de memória versos de Brecht, eu descobria o mundo adulto.

Tenho tentado, nestas crônicas, recuperar lembranças literárias como essa, e situá-las na banalidade de uma vida qualquer. Uso o “eu” das memórias, mas penso apenas que é uma adolescente, numa escola, numa cidade como as outras… Não é rara a vida de uma pessoa que vai esbarrando nos livros, e com eles vai moldando seus caminhos. Neste caso, de um poema decorado aos pedaços (nos ensaios, não recebemos o texto integral de A bruxa), guardei a memória desse amigo imaginário, calado, distante, que lê versos de Horácio.

Tal amigo sequer era raro — era um tipo “desses”. Desses quietos que leem poemas antigos… “mas secretamente influem na vida, no amor, na carne”. Essa figura me soava familiar, aos catorze anos? Talvez meu pai, ou minha mãe… talvez nós, minhas amigas e eu, que buscávamos nos livros alguma verdade difícil de achar em nossa vida de colegiais. Dois milhões já não era tanta gente assim, cinquenta anos depois que os versos foram escritos. Drummond já tinha morrido. Do nosso ponto de vista, ele era quase tão antigo quanto Horácio.

O amigo calado, descrito em três versos, me acompanha até hoje. Há alguns anos, comprei uma antologia de Poesia Lírica Latina, planejando finalmente ler Horácio. Li, mas não consegui apreciar direito, e doei meu exemplar. Minha única amiga que compreende Latim não é calada nem distante.

Hoje de manhã, digitei no Google “estou sozinho no mundo”, imaginando que encontraria o poema. Descobri que há diversas seleções de frases, espalhadas na internet, sobre o tema: “sou sozinho na vida”; “sempre fui sozinha e nada muda”; “fique sozinho no mundo, mas não deixe ninguém te tratar como lixo”. Essa última máxima, de que não descobri a autoria, vem às vezes ilustrada com uma foto do Coringa de Joaquin Phoenix.

Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

Rascunho