Um sonho dividido

A força de uma livraria, do seu encantamento, dos seus símbolos e de como pode ser especial para seus frequentadores
Ilustração: Thiago Lucas
21/07/2024

Cada dia é único na rotina de uma livraria, posso provar aos caros e pacientes leitores. Outro dia, estava trocando mensagens com um amigo e escritor e escrevi que “uma livraria nasce todos os dias”. A frase, essa sentença, mexeu com o meu amigo., Ele disse: “Preciso escrever sobre esse achado”. Sim, uma livraria nasce todos os dias. Diariamente, somos visitados por conhecidos e estranhos, por conhecidos estranhos e por estranhos desconhecidos e assim, como mágica, surgem as histórias para além da nossa missão primeira: a de vender livros. E, dia desses, uma amiga, casada com um grande amigo de infância, me visitou e não foi para pedir algum livro.

Ela se sentou e começou a contar a história de uma autora, fotógrafa, muito próxima a ela. Essa autora pediu para que ela fosse até a livraria para que eu ouvisse a sua história, a história dessa amiga. Eu ouvia um pouco no piloto automático até então.

Ela me contou que a amiga faz um trabalho de registrar os retratos, fotografando as pessoas e que, no momento desses retratos, ela pede às pessoas que falem um pouco sobre elas, sobre quem são, sobre suas vidas. E, talvez, devido estarem se mostrando, sem máscaras, elas contam sem pudores suas experiências, impressões pessoais. Aos poucos, essa história foi me tocando, imaginei essa troca de intimidades em forma de depoimento, desabafos existenciais.

E, nesse momento, minha amiga também traz uma confissão, não dela, mas da fotógrafa. Ela disse que a sua amiga sonhava em lançar este futuro livro na livraria. Ouvi novamente no automático. E aqui penso sobre isso, nós gastamos as palavras, as usamos em tantas ocasiões que o poder delas diminuem, seu brilho fica pálido. Eu ouvi sobre o sonhar como uma figura de linguagem e isso não me impactou. Nessa hora, minha amiga entendeu que eu estava mas não estava lá. Ela repetiu a frase e dessa vez eu despertei. Ela realmente, literalmente, sonha de forma recorrente estar na livraria lançando seu futuro livro de fotografias e histórias dos seus retratados.

Eu imediatamente sugeri que ela, a fotógrafa, nos visitasse para contar do seu projeto. Isso aconteceu em menos de meia hora, quando me foi apresentada a autora sonhadora.

Ela detalhou o projeto de seu livro de imagens a partir de retratos de pessoas pretas, fragilizadas pela pandemia e que sob a mira de um clique abrem suas vidas, contam suas histórias para a autora. Falamos sobre os desafios de se publicar um livro de imagens, que é um livro de arte, com papel especial, impressão cuidadosa e de formato grande, de mesa, é um grande desafio para se viabilizar um livro de fotos e acho importante explicar os futuros obstáculos, mas nada disso a desanimou.

Quando perguntei do seu sonho recorrente, ela assentiu sem titubear dizendo que o sonho se repete muitas vezes, e dessa forma ela crê que tudo vai se realizar, que o livro vai sair, que ela um dia estará na livraria recebendo seus leitores.

Quando elas se foram, fiquei pensando sobre a força de uma livraria, do encantamento que este espaço guarda, dos seus símbolos e de como pode ser especial, para mim e para os outros. Seria uma livraria apenas um comércio, um lugar para fins práticos, um fast food? Claro que não acho nada disso e a cada relato que divido com vocês, eu reforço a sensação mágica de se viver em uma livraria.

Não sei mais qual é a nossa primeira missão, e talvez isso seja bom, a praticidade pode nos afastar das pequenas surpresas, da chance de nos espantarmos. Não desejo ser prático em todos os momentos.

Apenas desejo que o sonho da autora se realize.

José Luiz Tahan

É livreiro, editor e idealizador do festival Tarrafa Literária. Autor da antologia de crônicas Um intrépido livreiro nos trópicos (Vento Leste).

Rascunho