Era 1994, provavelmente. Eu morava num sobrado de fundos, do outro lado da rua onde passava o ônibus para a universidade; em frente ao cemitério da rua Cardeal Arcoverde. A TV e o rádio ficavam numa salinha do subsolo, sem janelas. Nessa TV, num domingo ocioso, ouvi o locutor angustiado com o que acabava de acontecer — o carro de Ayrton Senna tinha batido em alta velocidade contra uma barreira, durante a corrida de Fórmula 1 que assistíamos tranquilos em nosso hábito nacional.
Era frequente eu ficar sozinha nos domingos. Minhas companheiras de república iam visitar os pais. Aos sábados à noite, saíamos para cervejas e azaração nos botecos da Vila Madalena, que naquela época era um bairro ainda meio residencial, com botecos baratos para estudantes. Anos antigos em que só existiam duas cervejas: Brahma e Antarctica. Por algum vestígio nacionalista, a Antarctica era que representava nosso modo de ser.
No domingo, quando minhas amigas saíam para seus almoços de família, eu ligava o rádio. Minha preferida tocava Rap nacional (era SP, anos 1990). Às vezes eu trocava para a rádio Cultura, e foi lá que ouvi um especial com poemas de Rubén Darío declamados por uma atriz argentina. Desde os primeiros versos, aquilo me pareceu tão forte que coloquei uma fita para gravar, no aparelho três-em-um. Ouvi e reouvi dezenas de vezes a voz veterana:
Dichoso el árbol que es apenas sensitivo,
y más la piedra dura, porque ésa ya no siente…
A cadência ficou gravada em mim. E ressurge hoje quando, numa arrumação, abro minha velha pasta de arquivos da faculdade. Entre os xerox amarelados, uma folha impressa com Cantos de vida y esperanza. Letrinhas de impressora matricial — devem ser do meu primeiro computador, lá pelos fins de 1997. Procurei o poema, com ansiedade, ao descobrir no raiar da internet que poderíamos recuperar nossos elos culturais perdidos (minha amiga decidiu morar na Inglaterra, levou emprestada minha fita e nunca devolveu).
De alma recomposta, reencontrei Rubén Darío na internet:
muy siglo diez y ocho y muy antiguo
y muy moderno; audaz, cosmopolita;
con Hugo fuerte y con Verlaine ambiguo…
Acreditei profundamente nesse poema, ao mesmo tempo autobiografia simbólica e manifesto poético: “Por eso ser sincero es ser potente…”. Relendo, hoje, reconheço os versos com que tanto me identifiquei:
Yo supe del dolor desde mi infancia,
mi Juventud… ¿fue juventud la mía?
Sobre o nicaraguense Darío, diz a Wikipédia: “iniciador e máximo representante do Modernismo literário em língua espanhola”. Que modernismo estranho é esse, para quem estudou na escola o Modernismo de 1922.
Nunca parei para investigar as raízes francesas dessa lírica simbolista. Muita energia masculina, Europa demais. Houve um momento, no início dos anos 2000, que decidi esquecer os estrangeiros, e me concentrar no samba da velha guarda e em nossa imaginação tropicalista. De Darío, me mantive fiel aos meus versos preferidos:
La virtud está en ser tranquilo y fuerte…
la vida es misterio; la luz ciega
y la verdad inaccesible asombra…
Traduzo para palavras familiares, embora nem seja necessário: a vida é mistério, a luz nos cega e a verdade inacessível nos assombra… a virtude está em ser tranquila e forte.
Ou, como cantava Walter Franco, “a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”.