Felicidade clandestina: uma abordagem (3)

A antagonista submete a narradora-menina a “humilhações”, exercitando “com calma ferocidade o seu sadismo”
Clarice Lispector por Ramon Muniz
01/07/2024

Ainda sobre as personagens do conto Felicidade clandestina. A colega: é antagonista da narradora-menina, que cuida em criar da outra uma imagem efetivamente desfavorável, negativa. A colega é caracterizada como “gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos”. Tem “um busto enorme” e costuma encher “os dois bolsos da blusa […] com balas”. Possui um talento “para a crueldade”. É “pura vingança, chupando balas com barulho”. Submete a narradora-menina a “humilhações”, exercitando “com calma ferocidade o seu sadismo”. Tem um plano “tranquilo e diabólico” contra a outra. Escorre “fel” de seu “corpo grosso”. É tida como ardilosa, mentirosa, porque, como informa a própria mãe, o livro de Monteiro Lobato nunca foi emprestado (“nunca saiu daqui de casa”). A própria mãe, como indica a narradora-menina, se assusta com a filha que tem: “Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! […] E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha”. Consolida-se, aqui, a imagem da perversidade, de pessoa indigna, indesejada. O único ponto positivo que a narradora-menina vê na colega é o fato de ela ter “um pai dono de livraria”. Mas aqui há ironia — a qualidade é do pai e não da filha. A mãe: constitui o eixo moral do conto. Dá um corretivo na filha e é acolhedora com a narradora-menina, cedendo-lhe o livro (“E você fica com o livro por quanto tempo quiser”). A narradora-menina a tem como uma “mãe boa”. Note-se que, aos olhos da narradora-menina, tanto a mãe (por ter interferido contra a filha e por ter senso de justiça ao emprestar-lhe o livro) quanto o pai (por ser “dono de livraria”) são pessoas do bem. A colega é, como já indicado, a imagem da pessoa indesejada (espécie de sombra dessa família).

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho