Não sei se é sequela da covid. Pode ser. Só tive a maldita gripe depois de vacinada, quando todo mundo já retornava à rotina mais ou menos de antes. Mas uma coisa não voltou: minha memória para nomes. Será que a infecção é tão seletiva assim? Dirão os cientistas que ela é capaz de gostar de nomes próprios e de desprezar os verbos, por exemplo? Uma luta, hoje em dia, lembrar nomes de pessoas com quem convivi, títulos de livros, nomes de autores, atrizes, professores. Um horror. Me dá uma angústia danada e fico horas invocada, tentando resolver o problema sem recorrer a uma busca no Google ou a outra prótese qualquer.
Outro dia percebi que as vítimas não são só os nomes próprios. Lembrar um nome — que aprendi na educação básica como substantivo comum — virou um esforço hercúleo, embora nem sempre envolva músculos e força. Pelejei demais, um dia desses, para lembrar da palavra “eclusa”. E é bonita a bicha, uau! Um nome comum lindo desses e eu não o capturava de forma alguma do pátio da memória. Sabia que a sabia, mas ela não vinha. Senti certas cócegas ao pé da língua, fechei os olhos, apertando-os, como se isso pudesse espremer algum pedaço do cérebro, fizesse alguma circunvolução cuspir a palavra de volta ao palco, mas não deu certo. Até que, horas ou dias depois, num momento de relaxamento dessa tarefa de lembrar, a palavra caiu quicando: “eclusa”. Eu queria me referir à entrada de um edifício, e era isso.
Pior é quando é com gente. Encontrei umas estudantes queridas, vieram passear no campus, na antiga escola, que odiavam com carinho enquanto estavam lá, e agora amam com saudade, depois de se livrarem. Quem disse que os nomes delas me vinham à cabeça? É um teatro danado fingir lembrar, fazer cara de quem não disse o nome porque não quis, chamar de algo mais genérico, tipo “querida” ou “menina!”, e essa performance cai bem em professoras experientes. Mas a verdade é que aqueles rostinhos conhecidos, com os quais convivi por mais de ano, não pareciam ter nome próprio depois da covid. E preferi não arriscar, porque errar nome é incômodo.
Num lançamento de livro, a coisa fica feia de vez. Quando o livreiro não colabora ou se esquece de colar aquele post-it esperto com o nome da pessoa, eu arranjo jeito mais ou menos despistado de saber o que devo escrever no autógrafo, mas sem dizer diretamente “como é mesmo seu nome?”. Para algumas pessoas, isso pode parecer um desleixo indesculpável. O que quero é que essa gente, vítima do meu oco cerebral para substantivos, saiba que não é por mal, é só uma sequela que me afeta a gramática.
Mais de uma vez, tive de recorrer ao celular, naquela Googlada acintosa, para rememorar o nome de um ator famoso. E não é coisa assim de Cauã ou Xamã; é não lembrar de Antônio… aí, ó… Capaz de eu lembrar o personagem e não me recordar do sobrenome do homem… Antônio Fagundes! Ou do Lima Duarte, que é quase sinônimo de televisão. Ou da Glória Pires, ícone entre as atrizes. (O esquecimento do Fagundes aqui foi uma demonstração prática e real do que tem acontecido). E se passa o mesmo com escritores e escritoras, talvez personagens e até com gente do meu trato frequente.
Agora, os nomes e as pessoas que a gente quer esquecer, esses o vírus não atacou. Não esburacou a memória de gente de energia ruim ou de trato difícil. Vejo que, além de seletivo quanto à classe gramatical, meu coronavírus foi maldoso, me tirando a companhia de quem eu queria manter e deixando por perto certas malas sem alça. Como diria minha mãe: vê se eu posso com isso?
Estou quase arranjando uma camiseta e uns pins de lapela com a inscrição: “erro de memória”, quando algo falhar. Na mesma vibe do querido “erro 404”, que não há quem não conheça. É quando dá um branco, a página não é encontrada, e pelo menos a gente sente que esquecer tem esse ar moderno de ambiente digital.