Não é raro os leitores e amigos que visitam a livraria dizerem que, ao lerem as crônicas que cometo, pensam ser histórias inventadas. Respondo mais do que na hora que não são, que a vida vivida numa livraria é assim: uma conversa mais inusitada do que a outra e, no máximo, quando as retiro da minha memória, pode haver um ou outro passarinho na história, para dar um ritmo, ou um desfecho, mas garanto que o que se leu, se viveu.
Num fim de expediente, enquanto eu e o funcionário da noite começamos a arrastar mesas e cadeiras para dentro da livraria, já com algumas luzes apagadas e um dos lados da porta de ferro fechada, uma senhora com seus setenta e tantos anos entra e me faz uma pergunta que me pega de surpresa: o que seria uma “sitcom”? Eu processei a pergunta nos meus arquivos já um pouco cansado por sentir que dali não haveria muito interesse em uma última compra no dia, mas vamos tentar clarear as ideias para minha interlocutora. Uma sitcom é uma comédia, na maioria das vezes televisiva na qual se tem uma mistura de teatro e TV e que muitas vezes há uma plateia que se manifesta com risadas e aplausos, ou até essas risadas e aplausos podem ser apenas gravações que entram no meio dos episódios das comédias. A senhora pensou um pouco e refletiu, “foi um rapaz que comentou comigo agora pouco e não entendi, ele disse que a sua vida (a dele) era uma sitcom”. Eu de bate-pronto pensei alto para ela, “ah, talvez ele quisesse dizer pra senhora que a vida dele era uma comédia, que talvez as risadas sejam das pessoas que riem dele, algo assim”.
Ela recebeu bem a teoria, mas não fez menção de sair da livraria. Confesso que, como adoro seriados e sitcoms, não me aborreci de seguir na prosa. Bem, a senhora permanecia na minha frente e sem mais nem menos mudou as direções das suas questões e prosseguiu me entrevistando, só que dessa vez num assunto muito mais comum, um tema que diariamente nos trazem sem a menor cerimônia, sem a menor delicadeza, sem a menor, mínima, preocupação com a gente, os profissionais do livro. Claro, paciente leitor, leitora, ela resolveu falar sobre o futuro do nosso negócio. Olhou pra mim e disparou me perguntando se eu achava que as livrarias iriam acabar, se extinguir, fechar.
Nesse pequeno espaço de tempo em que pensava na resposta e que a dei em dois segundos, aqui, nessa crônica, posso dividir com vocês as camadas mais internas que se oferecem no pensamento, na divagação que tenho construído a partir dessa mesma pergunta indelicada feita dia após dia para nós, livreiros. Ainda antes de ir pra resposta fico matutando, será que advogados, médicos e outros recebem diariamente essas indagações, pessoas chegando e questionando sobre seu futuro, se a IA, inteligência artificial, vai acabar com eles, se os robôs vão prevalecer. Talvez, sim: o nosso mundo está sofrendo mutações a todo o instante e o que virá ainda é, pelo menos para mim, um mistério.
Respondi para ela que a sua percepção sobre o nosso futuro, ou a ausência de um futuro. se dá principalmente porque notícias ruins são muito mais eficazes do que as boas notícias. Prossegui dizendo que as redes de livrarias estão, sim, sofrendo por conta dos seus volumes e áreas enormes e que elas precisam se adaptar, assim como, em alguma medida, a gente nota que a capacidade dos cinemas, o tamanho das suas plateias, diminuiu naturalmente ao longo das décadas e isso acontece porque existem muitos outros tipos de lazer hoje. Comentei com ela também: “a senhora sabia que abriram mais de cem novas livrarias no Brasil nos últimos anos?”. E emendei, “tá vendo como as notícias boas se espalham menos?”. Acho que nesse momento era ela que queria terminar o papo e a ajudei me encaminhando pro desfecho que, claro, será o desfecho dessa prosa que eu e você estamos levando.
Esta livraria vai fechar agora, mas por conta do adiantado da hora, para encerrarmos o expediente. Amanhã estaremos aqui a partir das dez da manhã, então, boa noite, senhora. Ouvi risos e aplausos na sitcom que estava dentro da minha cabeça.
Boa noite.