Vejamos com mais detalhe os personagens do conto Felicidade clandestina, de Clarice Lispector. A narradora-menina: apresenta-se, num primeiro momento, como alguém diferente fisicamente da colega, já que pertence ao grupo das “bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres”. A colega é “gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados”. Num segundo momento, e colocando-se mais uma vez em oposição à colega, a narradora-menina demonstra que tem valores ligados ao livro, à leitura. Isto a posiciona num degrau superior — chancela de algum modo a sua inteligência, caracteriza-a como alguém interessada em obter embasamento ou lastro cultural. A narradora-menina em seguida procura evidenciar que é vítima do sadismo e/ou da crueldade da colega. Sadismo e crueldade que serão reparados pela atitude da mãe que autoriza o empréstimo do livro. Da experiência relatada no conto a narradora retira pelo menos três coisas importantes: 1) os desejos verdadeiros se impõem, custam a ser refreados (“Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam”); 2) há uma aprendizagem, derivada da persistência, com os desejos que são protelados (“Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro para outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda […]. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo”; 3) como já indicado na coluna anterior, é melhor que a felicidade seja, para o indivíduo, um ato furtivo, secreto — clandestino. Se exteriorizada, ostentada, ela pode vir a causar desconforto, inveja — ou despertar “o talento para a crueldade” de alguns.