Machado, 2024

Em uma inusitada entrevista, o Bruxo do Cosme Velho usa a pena da galhofa e a tinta da melancolia para falar do mundo atual
Ilustração: Oliver Quinto
29/05/2024

Com a participação de Pai Divaldo de Oxalá, Janete Sensitiva e Dona Odete da Maré, após horas de sessões espirituais e leituras de borra de café, por fim, obtivemos sucesso. Conseguimos entrevistar o bruxo do Cosme Velho, Joaquim Maria Machado de Assis, na redação do Rascunho. Trajado em seu indefectível terno escuro e de pince-nez, o autor fluminense, que recentemente se tornou celebridade nos Estados Unidos, usou a pena da galhofa e a tinta da melancolia para nos pintar um quadro de 2024.

 • Um prazer tê-lo conosco em 2024, senhor Joaquim Maria. E que tal essa experiência de viajar no tempo?
Viajar no tempo vem sendo uma prática inusitada, diria até rocambolesca. O que mais me impressiona são essas máquinas de bolso, os tais celulares, e como as pessoas parecem conversar mais com elas do que entre si.

 • Falando em conexão, como o senhor avalia a recepção das suas obras nos dias de hoje? Ainda acha que suas críticas à sociedade seguem atuais?
Devo confessar, é quase como se eu tivesse escrito ontem… A hipocrisia, a vaidade e as peculiaridades humanas são eternas. Talvez apenas tenham mudado de roupa e de palco. Vejo que a essência humana permanece a mesma, e por isso meus livros ainda são best-sellers.

 • Falando em roupa, o senhor viu como a moda mudou? O que acha das vestimentas modernas?Estou perplexo. Vi jovens vestindo o que parece ser uma combinação de pijamas e trajes de astronauta. E essas calças rasgadas que custam uma fortuna? Parece que a moda decidiu abraçar o absurdo de vez. No meu tempo, rasgado era consertado, não vendido a peso de ouro.

 • E sobre a tecnologia? O senhor já experimentou usar um smartphone?
Experimentei, sim, mas confesso que foi um desastre. Tentei escrever um soneto no bloco de notas de um iPhone e, por algum motivo, o aparelho transformava quase todas minhas palavras em um tal de “emoji”. Acho que prefiro minha velha pena e tinta. Pelo menos elas não tentam alterar meu texto.

• Senhor Machado, afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho?
Ah, a eterna pergunta! Posso dizer é que Bentinho, com toda aquela insegurança, bem… ele talvez precisasse de umas sessões de psicanálise para resolver suas dúvidas. Ou tomar esse emplastro do século 21, o Rivotril. Mas deixemos essa questão no ar. Afinal, a dúvida é o que torna a narrativa sedutora, não é?

• Nos dias de hoje, quem o senhor vê como seu herdeiro literário no Brasil?
Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

• Ressente-se, de alguma maneira, por não ter recebido um prêmio Jabuti?
Em absoluto, a glória é a vaidade dos mortos. E, como podem ver, estou vivíssimo.

• Como analisa que, após 143 anos, suas Memórias póstumas de Brás Cubas foram finalmente descobertas e aclamadas nos Estados Unidos? Sente-se um vencedor?
É uma sensação curiosa. Quem diria que precisariam de quase um século e meio para perceberem que até um defunto pode ter algo interessante a dizer? Talvez os norte-americanos estivessem ocupados demais, como escreveu esse menino Caetano Veloso, com seus podres poderes, para notarem minha modesta obra. Mas, de todo modo: ao vencedor, sempre as batatas.

• Para finalizar, o que o senhor gostaria de dizer aos leitores de 2024?
Apesar das mudanças tecnológicas e sociais, não se esqueçam que a literatura é um espelho da alma. E a alma humana é atemporal. E, hélas, leiam mais Machado de Assis no Brasil, não só nos Estados Unidos da América.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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