O cobrador de Rubem Fonseca

Um personagem frustrado que faz do ato narrativo a melhor forma de se exercer e/ou de compor sua auto-estima — eis o conto O cobrador, de Rubem Fonseca
Como viver de literatura? Rubem Fonseca foi delegado de polícia
01/05/2005

Um personagem frustrado que faz do ato narrativo a melhor forma de se exercer e/ou de compor sua auto-estima — eis o conto O cobrador, de Rubem Fonseca. O protagonista narra — a questão principal parece ser mesmo, repita-se, de auto-estima — para chamar a atenção sobre si mesmo. Narra apagando aquelas ações que têm pouca importância em seu cotidiano e destacando os episódios que atestam sua violência e virilidade (chega a afirmar num dos poemas que escreve: “Eu sou o Homem-Pênis/ Eu sou o Cobrador”). Se a mídia costuma associar a violência a problemas com drogas, a “alterações na mente” do marginal, justificando assim a ação criminosa, no conto o protagonista age com absoluta consciência de seus atos. Não bebe nem fuma (os protagonistas de Feliz ano novo, anterior a O cobrador, ainda fumam e bebem — portanto, de certo modo, “alteraram” a mente para praticar o assalto à mansão). Eu chamaria o cobrador de “herói lúcido”. Os seus atos são praticados com cálculo. Ele elege na sociedade uma faixa de pessoas (“dentistas, comerciantes, advogados, industriais, funcionários, médicos, executivos”) que, segundo sua ótica, estão lhe “devendo”. Daí ele resolver não “pagar” mais nada, mas só “cobrar” de quem lhe deve. Intempestivo, intrigante, sente-se um “aleijado”. Talvez a cena mais violenta da literatura brasileira (a de Nhô Augusto brigando de faca com Joãozinho Bem-Bem no final de A hora e vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, é também muito forte) seja aquela em que o cobrador, invadindo um apartamento, estupra uma mulher: “Arranquei a camisola, a calcinha. Ela estava sem sutiã. Abri-lhe as pernas. Coloquei os meus joelhos sobre as suas coxas. Ela tinha uma pentelheira basta e negra. Ficou quieta, com olhos fechados. Entrar naquela floresta escura não foi fácil, a buceta era apertada e seca. Curvei-me, abri a vagina e cuspi lá dentro, grossas cusparadas”. O leitor deve sair do conto intrigado com o ímpeto do personagem — mas a “insanidade” dele se justifica. É que o conto nos remete para o lado bárbaro/brutal da própria civilização.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho