As estrelas de Marilia Arnaud

A ficção adulta feita com protagonista adolescente é sempre muito difícil, sobretudo se o adolescente é o próprio narrador da história
Marília Arnaud, autora de “O pássaro secreto”
01/08/2005

A ficção adulta feita com protagonista adolescente é sempre muito difícil, sobretudo se o adolescente é o próprio narrador da história. Tudo tem que ser bem recortado, medido, para evitar a confusão com a ficção infanto-juvenil. Em O livro dos afetos (7 Letras, 2005), Marilia Arnaud produziu uma peça de alto valor literário. Diria, até mesmo, tratar-se de uma pequena obra-prima do conto contemporâneo. Falo de Nem as estrelas são para sempre, de cara aplaudido pelo orelhista do livro, o competente Luiz Ruffato. Narrado do ponto de vista de um garoto de 13 anos, o conto traduz o temperamento de alguém tomado por uma tristeza terrível, decorrente, por um lado, do sofrimento da mãe moribunda e, por outro, do pavor que lhe provoca a figura paterna. Um pai rigoroso, ríspido, reservado: “Não sei se é possível um pai não gostar nem um pouco de um filho”. Um conto sobre relações humanas difíceis, danosas ao indivíduo, mas inteiramente insufladas pelos próprios códigos familiares. É no silêncio que o garoto — “apático” para o pai, um corretor de imóveis — tece sua tristeza, narrando para tentar compreender o que se passa em torno dele, ou entre ele, a mãe cancerosa, o pai perverso e a tia dedicada (veio, com a doença da irmã, para ajudar a família). Tudo para o garoto, no que se refere à mãe, ao pai e à tia (sobretudo a estes dois últimos), é cisma, suspeita. Tudo intolerável de tão insondável. O dia mais triste para o garoto é aquele em que descobre que o pai tem um caso com a tia: “Meu pai tentava abraçá-la, mas ela o empurrava e balançava a cabeça, sem falar nada. Ele dizia não ter culpa, que aquelas coisas, obra e graça do destino, aconteciam, que não podia mais viver sem ela, sem seu amor, que o que estava sentindo era mais forte que ele, e que Mamãe não precisava ficar sabendo, que não iria saber nunca, que ela, Tia Corina, podia confiar nele”. O garoto avalia o tempo todo, através de uma voz tensa, todos os truques de convivência dos membros da família. Para ele, é muito pantanoso o mundo dos adultos — e padece por isso. Pena por não entender as coisas como elas são. Interroga-as, mas, impotente, não as alcança: “São tantos os porquês! Quero continuar acreditando que quando eu crescer vou ter todas as respostas que preciso, embora Mamãe, que é sabida demais, tenha me dito que isso não será possível, pois, à medida que a gente vai crescendo, e depois envelhecendo, algumas respostas vão dando o ar da sua graça, mas também outras interrogações, algumas maiores e mais difíceis, vão surgindo”. O garoto rola na existência como quem patina em pedregulhos. Sente, já forte, ferina, a dor de viver. Contudo, uma coisa parece precisa, palpável, para ele: “Esse porquê, da paixão secreta de meu pai por Tia Corina, é tão grande e perigoso quanto o da doença de Mamãe”. Eis a chave do conto. E que chave! Um texto magnífico, em que dor e desejo, dedicação e desconfiança tecem o principal da trama. Personagens assim, tão bem desenhados, densos e doloridos, linguagem elaborada, bem posta, fazem de Marilia Arnaud, sem sombra de dúvida, uma das melhores contistas do país.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho